Pessoas-mistérios

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Tem pessoas que são mistérios. E não digo isso porque fracassei em desvendá-las. Seus olhos me acessam: me angustiam.

Algumas delas dizem tanto sem nem sequer bater os lábios. Suas palavras nunca ditas pairam sobre os meus pensamentos férteis tais como beija-flores perdidos.

Um dia desses, conversei com uma pessoa-mistério. Descobrimos-nos ao mesmo tempo. Mas, de início, fingi não notá-lo, pois não queria assustá-lo.

Eu seguia, em pé, a fila para pegar o coletivo; ele esperava, encostado ao banco, a oportunidade de vender seus produtos. 

Quando finalmente me sentei, ele já estava em pé, à espera de que todos os passageiros se acomodassem para, então, dar início ao seu negócio ambulante.

Quando olhei à minha direita, percebi que ele me observava com curiosidade. Olhei-o e o desejei boa tarde. Assentiu sorrindo e, logo em seguida, retribuiu. 

O ônibus seguiu viagem. Ele entrou em ação. Eu o desvendava de longe, de uma distância confortável entre os últimos e os primeiros assentos.

Foi rápido, tal qual o acelerar do motorista do ônibus. Quando me entregou o produto, perguntei-lhe de onde vinha. Tinha sotaque de um forasteiro, algo perto do sotaque paulista, pensei comigo.

-- Sou do Mato Grosso --, respondeu-me, apressadamente, mas com ar de quem voltaria para terminar o que havia começado.

Comprei d'ele duas capinhas plásticas para pôr RG: $1,00, as duas.

Passado poucos minutos, ele ia recolhendo, com cuidado, os produtos que havia disponibilizado à apreciação dos passageiros. 

Quando alcançou o meio do coletivo, por meio de movimentos ziguezagueantes, os seus olhos encontraram o meu olhar comprido, estendido para alcançar o dele.

Distância finalmente superada, ele havia chegado ao final da linha: eu, meus ouvidos atentos e meu olhar agudo sob os óculos escuros.

Então, continuou a me contar sua rápida biografia:

-- Nasci numa cidade no interior do Mato Grosso. Morei na capital, em outros países e estudei em diversos lugares também. Sou um vira-lata. Cê sabe como é... Neto de um palestino refugiado e de uma nordestina. 

Disse a última frase com olhos sobressaltados, de maneira a enfatizá-la.

-- Pode crer. Há quanto tempo cê mora, aqui, em Salvador? -- Eu insisti no diálogo, pois queria desvendá-lo pela linguagem que sai da boca também.

- Cheguei aqui tem três anos e me apaixonei pela cidade. 

Me ajeitei no assento. Ele devia ter uma explicação lúcida, por isso, insisti:

-- Sério, mano? O que chamou tua atenção?

Fiquei, realmente, curiosa. Quanto a isso, disse-me:

-- O custo de vida é razoavelmente baixo. Lá pra gente, quando alguém diz que vai à praia é porque planeja o ano todo. Aí, no final do ano, é que realmente vai. Aqui é diferente: se a gente quer ir à praia, é só ir, porque tem praia a qualquer momento. Tem frutas a preço de banana e a vida é mais simples, né. 

Um paraíso possível para ele, pensei com meus botões.

-- E o clima lá no Mato Grosso... comé? 

Naquele momento, sua história era a única isca humana possível para a minha mente de peixe urbana.

- Lá, a gente tem as quatro estações... tudo certinho. Aqui, não. Aqui, são só duas. -- sorriu.

Dito isso, poucos segundos depois, preparou-se para saltar do ônibus.

Despediu-se de mim como pôde. Deu-me um tchau tão apressado quanto à maneira que o motorista conduzia o coletivo pelo tráfego de automóveis do meio-dia de uma quarta-feira.

Seu adeus me pegou desprevenida, pois o retribui quando ele já alcançava a calçada.

Sozinha novamente, fiquei satisfeita em desvendá-lo, mesmo estando sufocada por receber em meu peito a avalanche de sua presença e os flashes de seu autorrelato.

Ele: para mim, um mistério por ora desvendado. Pronto para se tornar pessoa-mistério de outra.

Contos de RouxinolOnde histórias criam vida. Descubra agora