Dizem que quando estamos em uma situação de risco de vida ou desesperadora, vemos tudo em uma espécie de camera lenta. Não está totalmente errado, de fato parece que tudo fica mais lento mas somente após a experiência.
Nosso cérebro trabalha mais quando algo assim acontece, nos olhos conseguem captar mais detalhes, nossos ouvidos, mais sons e mesmo nosso tato, mais toques. O tanto de informações faz parecer que aconteceram muito mais coisas do que realmente aconteceu.
Clara já havia lido sobre isso em algum lugar, mas é claro que não foi capaz de se lembrar disso na situação em que um cão furioso se encontrava em sua direção.
Ela nem imaginava que situações extremamente piores que aquela surgiriam após isso. E que a grande maioria, seria lembrada como um incidente em “camera lenta".
O mecanismo de lutar ou fugir as vezes apresenta mais um tipo de reação, se é que se pode chamar assim. A paralisia.
E foi exatamente paralisada que clara ficou com o ataque do cão.
Pegar a arma e atirar? Fugir? Pedir por socorro?
Tudo isso acabaria com o plano, e já não bastasse seu pânico anterior a tentativa de sequestro, agora Clara ainda tinha a pressão de reagir à algo totalmente fora dos planos.
O cão estava cerca de um metro de distância de Clara, era possível ver cada musculo do pit bull se contraindo para o ataque.
Mesmo se Clara tivesse tentado uma reação não daria tempo para fugir.
Um latido estrondoso a fez estremecer, fechar os olhos e colocar os braços na frente do rosto.
“Charlie!”, Ouviu-se um grito.
De alguma forma, Clara estava inteira.
Ficou claro quando ela abriu os olhos, ainda lacrimejados, que o cão cessara seu ataque.
A senhora de idade estava brigando com o cão enquanto segurava o menininho que saíra da van anteriormente “Charlie! Não pode sair atacando os outros na rua! Entra já pra casa! E você, menina, a culpa é sua por provocar ele com essa máscara!”, concluiu a senhora que encarava Clara, e esta última com a máscara de cão alaranjada.
O casal que estava passando antes deu risada da situação enquanto iam embora, a assistente e o motorista olhavam curiosos para o que estava acontecendo. Clara pôde notar um balançar de cabeça de negação junto a um sorriso que o motorista tentava esconder enquanto olhava tudo pela janela da van escolar.
Uma garota com máscara de cão sendo atacada por um cão de verdade.
Se estivesse sem a máscara, Clara exibiria um tom altamente avermelhado em seu rosto, em uma mistura de angústia e vergonha.
Mas ela notou algo, além de todas as pessoas quase tirando sarro dela, tinha uma menininha na van que também exibia um curioso olhar por dentro da janela do veículo. Era Lívia Handman.
A senhora que havia colocado o cão Charlie casa adentro, agora conduzia o menininho que provavelmente era seu neto, para o mesmo local. E então finalmente entrou e fechou o portão, ainda se despedindo da assistente que trouxe a criança.
O plano não podia parar.
E foi neste instante, quando ainda era observada, que Clara pôde ver Thomas se aproximando de forma sorrateira e com a máscara de cão acinzentada.
Ele não hesitou em mostrar sua arma, a dele era um revólver maior e mais escuro do que o de Clara. E o colocou na janela do motorista da van.
“Sai de veículo agora!”, Thomas impôs de forma fria e séria.
O motorista levou um susto e colocou as mãos pra cima.
“Calma aí, meu senhor! O que é isso?”, perguntou o motorista.
“O que você pensa que é isso? Eu vou te matar se você não entregar a van!”, retrucou Thomas, muito sério.
Clara nunca havia visto Thomas sendo tão ameaçador como naquele dia. Apesar do nível de coragem que ele demonstrava, ela ainda temia que talvez, não houvesse sentimento algum dentro de Thomas.
Mas isso não impediu que o plano fosse adiante.
A assistente do motorista, percebendo a ação de Thomas, pegou o celular no bolso. Provavelmente para chamar a polícia.
Clara não permitiu. Ela sentiu como se seu corpo estivesse agindo de forma automática. Seria talvez, algum tipo de proteção ao Thomas?
Pois Clara duvidou que pudesse fazer o que fez em qualquer outro momento de sua vida.
Ela se aproximou da assistente e deu um forte tapa em suas mãos, fazendo com que o celular fosse projetado para longe. Em seguida, tirou o revolver e apontou para a mulher “Some daqui agora, se não eu atiro!”, disse Clara, em seu tom mais sério.
Ela quase hesitou quando viu o rosto da mulher apavorada e chorando. Mas mesmo tremendo, em pânico e confusa, Clara se manteve o mais firme que pôde.
“O que vocês estão fazendo? Não temos dinheiro, trabalhamos com o transporte de crianças só! Tenha piedade, meu Deus!”, gritou o motorista.
*click*
“Ouviu esse som, não? Foi minha arma sendo destravada! Você tem três segundos para sair!” disse Thomas, apontando o revólver bem no rosto do homem.
“Três…”
“Dois…”
“Tudo bem, então só me deixe tirar a menina de dentro da van", disse o motorista com os olhos arregalados de medo, mas ainda prezando pelo bem estar de Lívia “vocês podem ficar com o veículo, só me deixe tira-la e…”
“Ela vem com a gente, desce agora", cortou Thomas.
“Vocês não podem leva-la, não podem!”, gritou a mulher perto de Clara, esta última, percebeu que haviam olhares curiosos na rua, não sabia se ele sabiam da situação.
“Cala a boca!”, disse Clara quase gritando “se não calar a boca eu atiro, está duvidando?”.
Clara apontou a arma no rosto da mulher também.
A mulher pôs as mãos sobre a cabeça e se ajoelhou.
Por um momento, Clara se sentiu a pior pessoa do mundo.
O motorista foi descendo da van, evitando olhar nos olhos de Thomas que se encontravam brilhando de forma sombria por baixo da máscara de cão acinzentada.
Thomas o conduziu para junto da assitente.
“Me dê o celular!”, exclamou Thomas.
Com a cabeça abaixada, o homem lhe entregou o aparelho.
Clara andou um pouco e pegou o celular da mulher assistente.
“Andem até a esquina, sem correr e sem falar. Agora!”, ordenou Thomas para o casal que foi rendido.
Eles obedeceram.
Thomas esperou até que eles andassem uns dez passos e entrou na van, chamando Clara com um aceno.
Ela foi entrar e sentar no banco do carona mas Thomas a impediu.
“Ali atrás. Com a Lívia!”, disse Thomas apontando com o dedão.
Clara então pôde ver a garotinha encolhida em um dos últimos bancos da van.
Uma garotinha loira, com cabelos longos e lisos. Abraçava uma mochila vermelha com desenhos estampados e uma lancheira também vermelha e de desenhos estampados. Usava um vestido azul claro. E estava quase chorando.
“Olha… Eu…”, começou a dizer Clara mas logo foi interrompida.
“Não temos muito tempo, Clara. Pra ser bem sincero eu não pensei tanto em uma forma de faze-la falar. Conto com você”, disse Thomas.
Clara nem soube o que responder, em momento algum pensou que ela teria que fazer a menina falar… Mas respirou um pouco e tentou se acalmar após toda a confusão.
“Ah e não esqueça de esconder seu nome real", sugeriu Thomas.
Logo após isso, ele deu partida com a van, e tirou a máscara.
Clara também tirou a máscara e andou até a menina. Sentou ao lado dela e passou a mão em seus cabelos.
“Então, você é a Lívia? Você é tão linda, sabia?”, disse Clara tentando lhe trazer conforto e criar conexão.
Como faria a menina falar? Ela não tinha muita experiência com crianças. Aquele plano parecia cada vez pior para Clara. Sem falar sobre o medo de algum policial acha-los ou até mesmo de Thomas bater a van e tudo acabar mal.
A menina não respondeu e ficou ainda encolhida e de cabeça baixa.
Clara pegou o celular e abriu o app para gravação de voz.
“Estava tão ansiosa para te conhecer, Lívia. O que acha de conversarmos?”, fez outra tentativa, Clara, embora novamente sem sucesso.
A menininha só continuava encolhida.
Clara olhou em volta em busca de idéias que pudessem ajudar. Reparou mais uma vez na bolsa da menina e na lancheira. Já havia visto aquele desenho antes. Era de um famoso serviço de streaming. Ela as vezes passava pelo ícone do desenho quando procurava por algo para assistir.
Ela foi até a frente da van mais uma vez, e pediu o celular de Thomas.
“Por qual motivo quer meu celular?”, perguntou Thomas com uma expressão de confuso no rosto, enquanto dirigia a van.
“Confia em mim! Afinal, não havia deixado essa parte comigo, Amor?”, disse Clara sendo sarcástica.
Thomas entregou o celular fazendo uma careta de desagrado para Clara.
“Qual a senha?”, Perguntou Clara, agora falando mais baixo.
“Tangerina, underline, treze”, resmugou Thomas.
“Tangerina?”, disse Clara, soltando quase uma risada “Sério mesmo? Esperava mais de um assassino em série. Haha".
“A intenção é enganar, Clara! Vai logo fazer o que tem que fazer!”, retrucou Thomas.
“Ta, ta…”, disse Clara enquanto voltava para Lívia.
Então ela fez uma troca, colocou o celular de Thomas para gravar e com o seu, começou a reproduzir um episódio do desenho animado referente a estampa na mochila e lancheira de Lívia.
“Você gosta desse, não é? Toma, pode segurar", disse Clara, estendendo o celular para a menininha. E finalmente Lívia olhou.
E então olhou da tela do celular para o rosto de Clara com uma expressão confusa.
“Pode ver o quanto quiser", confirmou Clara.
Lívia lentamente pegou o celular, virou um pouco de lado.
“Papai diz que não posso ficar segurando o celular, ele sempre coloca longe de mim", disse Lívia, com uma voz de choro, embora não estivesse chorando.
Clara pensou que talvez já conseguisse tirar alguma informação sobre o investigador uma vez que Lívia citou o pai.
“Ele diz isso? O que mais seu papai fala pra você?”, perguntou Clara, de forma doce.
“Que não devo falar com estranhos…”, disse Lívia, olhando para Clara e depois voltando ao celular.
Clara não esperava por essa. Mas não desistiu.
“Seu papai está certo. Não deveria mesmo falar com estranhos, Lívia”, respondeu Clara “olha só, sou amiga do seu papai, meu nome é Kate, ele mesmo pediu pra vir te buscar hoje, por isso o titio e a titia da van foram embora".
“Não acho que conheça o papai, ele não tem muitos amigos…”, disse Lívia.
“Mas eu conheço, ele é um grande policial chamado Ricardo, não é? Acontece que ele me salvou uma vez.”, disse Clara.
Lívia virou a atenção para Clara.
“Quer saber como ele me salvou?”, perguntou Clara.
Lívia fez que sim com a cabeça.
Clara olhou para os lados, simulando preocupação, então voltou de novo para Lívia.
“Mas… Não sei se posso te falar, é um segredo, entende?”, disse Clara em tom bem baixinho.
“Mas… Kate…”, murmurou Lívia ainda com voz de choro mas com olhar se súplica.
Clara havia ganhado sua atenção total agora.
“Ta bom, posso te dizer. Mas meu namorado que está ali na frente não pode saber que eu te disse, tá?”, disse Clara sorrindo para Lívia “vai ser um segredo de meninas”.
Então Clara estendeu o dedido de sua mão direta para Lívia. A última esboçou um sorriso e disse “feito”, retribuindo o “comprimento de dedido" e selando um voto de segredo.
Clara então abaixou a meia da perna esquerda e mostrou a Lívia uma pequena cicatriz em forma de “u".
Lívia ficou surpresa.
“Já faz um tempo, um dia eu estava indo pra escola e começou a chover. Então me abriguei em baixo de uma árvore até ela passar… Mas eu não sabia que era a árvore de um tigre! E quando ele voltou, começou a me atacar!”, disse Clara, mas hesitou pela cara de dúvida de Lívia.
“Não sei se isso é verdade, kate. Comi teria um tigre na cidade? É mentira, não é?”
Clara não esperava que Lívia fosse tão inteligente para uma criança de seis anos. Se ela não desse um jeito, perderia a confiança da menina.
“Não é mentira, eu juro! Acontece que era um cachorro muito grande e eu era menor, então na época achei que fosse um tigre”, disfarçou Clara.
“Ah então por isso você tem medo de cachorros?”, disse Lívia inocentemente lembrando de Clara paralisada pelo ataque do pit bull.
E aquela frase havia sido um alívio para Clara.
“Exatamente, Lívia! E não foi só isso!”, disse Clara, engolindo seco.
Ela sabia que o que diria após isso poderia desencadear memórias ruins de Lívia. Mas tinha que faze-lo.
“O cão me mordeu bem aqui na perna mas também rasgou toda a minha roupa… Eu fiquei pelada. Mas seu papai apareceu e espantou o cachorro!”, disse Clara com pesar na voz.
“Nossa! E não ficou com frio? Estava chovendo", perguntou Lívia.
“Ah sim, fiquei com muito frio! Mas por sorte seu papai estava lá. Sabe o que ele fez?”, perguntou Clara.
“Acho que ele comprou roupas novas!”, respondeu Lívia.
“Não… Ele… Ele também tirou as roupas e me aqueceu com um abraço… isso já…” engoliu seco, mais uma vez “isso já aconteceu com você e ele, Lívia?”, perguntou por fim, Clara.
Lívia colocou o dedo na boca tentando se lembrar de algo.
“Acho que não Kate…”, respondeu Lívia ainda com olhar pensativo.
“E não tem mais nenhum momento que vocês tiram a roupa e fazem coisas?”, Perguntou Clara, com pesar no coração cada vez maior.
“Não tenho certeza… Talvez no banho”, respondeu Lívia.
Até então aquilo não servia de prova. Então Clara foi adiante.
“E como são os banhos?”, perguntou Clara.
“Fazemos um monte de bolhas, o papai gosta de quando elas estouram na banheira”, respondeu Lívia fazendo gesto de explosão com as mãos.
Banheira, Clara não havia pensado nisso…
“E o que mais fazem na banheira? Dão mergulhos? Entram os dois?”, prosseguiu Clara.
“Como assim? Não dá pra mergulhar em banheiras, kate. Teriam que ser gigantes, mas aí são piscinas”, disse Lívia.
“Claro, tem toda a razão, haha! Então o que mais fazem na banheira, Lívia?”, perguntou novamente Clara.
“A gente passa Shampoo e depois se seca acho que só… Ah! E sabonete também!” disse Lívia.
“Claro, querida…”, disse Clara, desanimada. Por outro lado se sentindo bem ao perceber que talvez Lívia não sofria algum tipo de abuso.
“Ah que cansaço…”, murmurou Clara, bocejando.
Gesto que foi repetido por Lívia. As duas riram.
“Quando está com sono, seu papai também te faz companhia pra dormir?”, perguntou Lívia.
Clara voltou atenção na menina.
“Como assim, querida? Seu papai te faz companhia pra dormir, como é?”, Perguntou Clara.
“Ah, bem… Se não faz…”, murmurou Lívia.
“Lívia, pode me contar. Queria muito saber, me conta como é que dormem na sua casa?”, perguntou Clara.
“Mas… é segredo…”, desviou o olhar, Lívia.
“Vamos, Lívia. Segredo de meninas, lembra? Prometo não falar pra ninguém”, disse Clara.
Lívia fez que sim com a cabeça.
“Bem… Acho que tudo bem. Promete mesmo?”, perguntou Lívia estendendo o dedinho.
Clara retribuiu o gesto.
“Eu prometo!”, prometeu Clara.
Lívia esboçou outro sorriso.
“Papai sempre me coloca pra dormir me contando uma história. Já ouviu falar da menina de mel? É a história que o papai conta", disse Lívia.
“Nunca ouvi, Lívia. Como é?”, questionou, Clara.
“Bem, papai diz que é nosso segredo. Nessa história existe uma menininha feita de mel e um urso viajante que tem uma varinha mágica. Um dia o urso encontrou a menininha e lambeu todo o seu mel, mas a parte que o urso mais gostava era em baixo da menina, pois lá era a fonte do mel”, contou Lívia.
Aquilo era algo… Aquela história não existia. Clara tinha Certeza. Havia algo errado, algo muito errado. Decidiu tentar adivinhar.
“E você finge que é a menina de mel e ele é o urso?”, Perguntou Clara, com a voz trêmula “É assim que fazem?”.
Lívia arregalou os olhos de surpresa “Ual como você sabe? Papai é o urso viajante e eu a menina de mel!”, disse Lívia com entusiasmo.
Clara abaixou a cabeça, sabia exatamente que a “menina de mel" era uma só um meio que o investigador Ricardo usava para abusar de Lívia.
“E o que acontece no fim da história?”, perguntou Clara, simulando entusiasmo.
“No fim o urso revela que ele que faz o mel da menina, então ela bebe direto da varinha dele. Mas depois ele sempre coloca mais mel dentro da fonte dela", respondeu Lívia.
“Lívia… vocês fazem essa parte da história na vida real também né? Onde fica a varinha do urso?”, Perguntou, Clara com um enorme aperto no coração.
“Em baixo do umbigo, dentro da calça. E a fonte da menina também fica em baixo do umbigo… Mas… Por que está chorando, Kate? Disse algo errado?”, perguntou Lívia, tão inocente quando uma menina com sua idade pode ser.
E Clara estava devastada. Tinha a prova que precisava mas aquilo custou um tremenda dor em seu peito. Parecia que havia uma abismo dentro dela.
Ela abraçou a menina e chorou por cerca de dois minutos. Não podia imaginar o quão traumatizante a vida daquela menina seria. Uma infância e futuro destruídos pela selvageria e doença de um homem.
Mas o choro só piorou, ela tinha as provas, tinha Thomas para ajuda-la mas… Não importa o que fizesse, ainda teria que deixa-la voltar para o pai no fim do dia.
Algo que Clara nunca havia sentido começou a tomar conta dela. Um ódio sem igual. Definitivamente ela tinha que fazer algo.
Definitivamente ela tinha que matar o investigador Ricardo.
Não estava ligando se fosse presa ou morta no caminho.
Ela estava determinada a mata-lo.
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MORTO EM COMUM [Original]
Romance[Esta não é uma história de romance comum] Alguns casais podem dizer que se conheceram por algum amigo, lugar, festa em comum. No caso de Clara e Thomas, este algo "em comum" é um MORTO. Cuidado. Assassinatos em série, manipulação psicológica e uma...