O Ópio e a Cicatriz

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Que terrível essa coisa de existência, tão estúpida, tão mesquinha e mesmo assim nos apegamos a ela. Queria ter esse encanto, queria ao menos ter um prazo como ela. Outro insulto, a imortalidade, uma maldição, bendita e maldita no mais íntimo do seu ser. Pois bem, clichê ou não, a verdade tende a ser perturbadora. Dezenas de pensamentos fúnebres passavam pela minha mente enquanto meu corpo afundava na banheira. Por quê? Como? Para que?... Tantas questões. Aquilo tudo fritava meu cérebro em quanto lagrimas escorriam a cada atormentada lembrança. Voltando um pouco para que fique mais compreensível, no início dessa noite tive uma briga terrível com um amigo humano, foi proposital, mas ainda doía, mas aquilo era parte das minhas obrigações. Quando você simplesmente se afasta não resolve, podemos nos rever e tudo será normal, mas quando há magoa não há reencontro amigável. Sim, era parte do plano. Eu estava de mudança. Cidade nova, vida nova, literalmente. Precisa incendiar meu passado e assim fizera. Briguei com os amigos, terminei os romances, rompi todos os laços e parti. Há séculos fazia isso. A dor sempre era terrível, mas novamente digo, era preciso. Desfazer tudo, destruir tudo para começar de novo. E cá estou eu, naufragando na banheira com um cigarro entre os dedos, brigando até com a vida, amaldiçoando a imortalidade e gravando todas as lembranças para o martírio. Cidade nova vida nova. Que seja, sobrevivo a isso, já fiz esse lance antes. Saí da banheira e enrolei a toalha no corpo. Fui até a janela e me debrucei sobre ela ascendendo outro cigarro. Que noite linda, céu com nuvens sombrias e uma berrante lua cheia decorando o infinito. Sobreviver, viver, a dádiva, o presente, o fardo. Nesses momentos me ocorria. O quão bom é ser imortal? O sangue, o sexo, a noite... os fardos. Que melancolia, odiava momentos como esse. Queria morrer, incendiar a casa, deixar de existir, buscar abrigo no finito. Há... o finito.... Que recomece. Recuperada das dores do "adeus bruto", joguei-me sobre os lençóis como um corpo sem vida. No dia seguinte a nova casa, nova cidade, nova vida. Os céus sabem, nós merecemos estar lá em baixo. Como eu era cruel.... Sofriam todos os envolvidos. Devia desistir da vida em sociedade. Como se sobreviver já não fosse complicado o bastante, o viver fazia questão de esbofetear-me com frequência. Ouça-me cantar. Todas as cores. Cidade nova então, vida nova, começar de novo como num jogo. Me odeiem, me amem, continuarei aqui. Um anjo mal de sorriso galante e com um brilho flamejante no olhar, imortal como a fênix, tal qual a que tenho tatuado no peito. Todo o sangue misturado a lagrimas, o ódio, a paixão, os mistérios da vida, o meu mistério, meu amanhã. Casa nova, bela casa. Semanas e enfim tudo estava no lugar. O sorriso fundido nos lábios, a expressão de despreocupação estava maquiada novamente em meu rosto. Eu estou sempre bem. Ninguém precisa saber das minhas dores. Com cada um desses paraísos artificiais e ok, tudo está bem, a vida é bela, simples e eu sigo. Pois é, não sou uma boa pessoa, nunca fui. Nunca fui a filha que meus pais mereciam ou uma boa companhia, também fui péssima amiga e pior amante possível, mas as pessoas vão e vem. A solidão me acerta com sua lança, mas está bem assim, é com ela minha convivência mais longa.

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