Estou morta. E estive assim por tanto tempo, que já não recordo mais nem as coisas mais simples. Meu nome. Ou como morri. Lembro de uma alvorada púrpura, e nada mais. Perambulo por esses corredores há tanto tempo que deixei de contar quando o último morador partiu e as ripas mais maciças apodreceram. Não lembro do meu rosto. Nem da minha jornada em vida. Mas vejo meus dedos esguios e acinzentados escorrerem da manga encardida. Não seria capaz de contar minha própria história. Mas posso contar a história dessa casa. A história que presenciei quando já não existia mais para esse mundo. Ouço os passos dos animais que fizeram dessa desolada construção sua moradia. E quando chove, ouço a sinfonia das goteiras, mais lentas que os pingos lá fora. Vez ou outra um sopro de vida entra por essas portas. Geralmente são jovens em grupos buscando por aventura. Ou casais reacendendo a chama da velha mansão ao transformar seu assoalho sujo e apodrecido em um ninho amor. Às vezes são viciados, andarilhos ou qualquer outro tipo de vida que o mundo já esqueceu. Eu os observo. De longe. Invisível. Talvez também tenha me aventurado com amigos. Talvez também tenha amado. Talvez... também tenha sido esquecida. Me pergunto se morri de fato quando meu coração deixou de bater, ou se morri agora, que não posso contar minha própria história.