Capítulo 18

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O telefone soou a primeira chamada. A segunda. A terceira... E eu pensando. "Daniela ainda ele não atendeu, desligue e espere até vocês estarem juntos pessoalmente para conversar sobre isso." A quarta chamada veio e logo em seguida escutei a respiração dele.

— Oi amor, estava correndo. Que bom que ligou. Já chegou?

E agora o que eu queria fazer? E agora? Alguém pode me ajudar?!

— Dani, ta ai? Fala alguma coisa.

Eu comecei a chorar outra vez. Que droga... Eu tinha certeza que era forte e que eu conseguiria seguir com aquela conversa de boas, mas era óbvio que não...

— Você está chorando? Amor... O que está acontecendo? Fala comigo. Eu estou ficando preocupado.

O tom de sua voz era verdadeiro. Ele estava mesmo nervoso.

— Não com...consigo...

— O que você não consegue? Amor fica calma. Eu preciso que você fique calma pra poder entender o que é que está acontecendo.

— Eu ainda não... — Eu não conseguia falar nada. Não tinha a menor idéia do que eu queria falar com ele. Só queria pular essa parte e seguir como se nada tivesse acontecido...

Ele ficou em silêncio, assim como eu estava. Eu queria muito saber o que se passava na cabeça dele. Será que ele estava sentindo o mesmo que eu? Será que ele tinha mesmo me traído?

Eu suspirei, enxuguei minhas lágrimas e tentei...

— Eu chego em algumas horas, só queria te avisar. Beijo acho que vou perder o sinal. — Então eu desliguei a chamada. E sussurrei: — Queria ouvir sua voz também.

Meus pais seguiram o caminho. E parece que estavam indo rápido demais. Tudo o que eu queria era que demorasse muito pra chegar.

Durante o percurso final fora inevitável recordar um pouquinho mais de nossos momentos de intimidade.

Recordei com afinco, no dia em que fomos para uma apresentação de uma orquestra. Eu já havia visto algumas antes, mas todas eram na igreja. Ir a um espetáculo como aqueles foi sem comparação. Cada musica parecia falar comigo. Os instrumentos musicais em perfeita harmonia me encantavam. E estar ao lado do Fernando transformava tudo em mais mágico.

Ele olhava de canto a mim, que provavelmente estava parecendo uma criança em frente ao seu desenho animado favorito, e sorria.

Depois que saímos de lá, fomos a um restaurante, onde jantamos. O lugar era a sétima maravilha do mundo. E a comida estava sem explicações. Bebemos vinho branco naquela noite, e eu descobri que essa bebida me fazia falar tudo o que estava guardado nas profundezas das minhas memórias.

Foi nesse dia que compartilhei com ele como havia sido minha adolescência...

— Eu amava muito ir a igreja, quando criança. Era o lugar perfeito. Onde todos eram perfeitos e o amor era sem igual, mas essa fantasia durou tão pouco...

— Sério? E o que aconteceu? — Ele perguntou colocando outro garfo repleto de comida em sua boca.

— Eu fazia parte do grupo de escolinha, era tipo um grupo de estudos com crianças da mesma idade, e eu tinha um amigo que eu nunca me separava dele. Um dia eu fui na escolinha porque queria muito conversar com ele como sempre fazíamos, e assim que eu entrei na salinha ele se virou de costas... Eu insisti sem entender o porque ele estava fazendo aquilo, e então fui ao lado dele, que virou outra vez de costas para mim. — Dei uma pausa para beber um outro gole do vinho, que estava delicioso por sinal.

— E por que ele estava fazendo isso?

— Calma, vou te contar, antes preciso acrescentar que meu pai já estava separado da minha mãe nessa época e que os pais desse menino eram parte do ministério, um grupo de homens que comandam a denominação. Continuando o caso... Esse menino quando deu as costas a mim pela segunda vez gritou para todos escutarem.

"Seu pai é um veado, e o meu pai disse que não posso falar com você porque você pode estar amaldiçoada."

— Não acredito que ele falou isso... Onde esse garoto está para eu ensinar uns bons modos a ele?

Achei engraçado a reação dele. Bem que relembrando disso, me deu vontade de dar uns tapas nele também.

— Eu não faço a menor idéia de onde ele possa estar hoje em dia, e não duvido nada de ele mesmo ser gay... Então, terminando sobre esse fatídico dia. Depois que ele gritou isso, eu fiquei arrasada por dois motivos. O primeiro era porque eu não sabia o que significava meu pai ser um veado. E o segundo foi porque eu nunca imaginei que ele faria isso comigo.

— Tadinha! — Ele deu uma piscadela e prosseguiu: — Eu posso falar com você, e sempre poderei!!

— Obrigada. Acho que o pior foi o que aconteceu depois... Naquela noite eu sai da sala da escolinha e fui assistir ao culto ao lado da minha mãe, e o sermão daquela noite foi sobre isso. Sobre ser homossexual. Nossa as coisas que eu ouvi, eu nunca mais esqueci.

— Você quer falar o que escutou?

— Não sei... — Pensei um pouco e resolvi que sim, queria por isso para fora. Ele era a pessoa para quem eu deveria contar todos os meus traumas.

— Tudo bem, se quiser saiba que eu estou aqui para te ouvir independentemente do que seja o que tem para falar. — Sua solicitude, fora tão fofa que eu decidi que falaria mesmo. Pela primeira vez vomitaria aquela má digestão que carregava desde muitos anos...

— O homem que estava lá na frente falando, disse em tom de fúria, que todas essas pessoas morreriam de AIDS, e que eram uma aberração para a natureza humana.

— Credo...

— Eu todos os dias orava e pedia a Deus que não deixasse meu pai morrer de AIDS, porque eu simplesmente não poderia perder meu pai daquela forma. — Quando eu me recordei dessa lembrança tão amarga, eu senti que meus olhos estavam carregando-se de lágrimas, e junto dessa recordação vieram várias outras, então foi um pouco inevitável e eu desabei.

— Não precisa chorar amor. Esse homem claramente não tinha preparo nenhum para falar na frente de muitas pessoas. Alguém nessa posição deve ter conhecimento do poder das palavras e o que elas podem causar na vida de quem as ouvem. Eu sinto muito por você ter passado por isso.

Eu também sentia. Sentia por todos os gays que estavam lá e que tiveram que ouvir aquilo junto comigo. Sentia por todas as mães de gays que ouviram e se desesperaram acreditando que seus filhos teriam um fim dessa forma. E sinto ainda mais pela falta de consciência sobre o assunto. Não é doença de gays, todo mundo pode contrair o vírus e todo mundo esta sujeito a isso, seja quem for. Era triste demais pensar nessa parte da minha vida. Mas falar sobre ela com Fernando estava me ajudando a deixar no passado. A entender o meu caminho novo e tudo o que em tudo o que eu estava me transformando.

Depois de ter falado sobre isso, e chorado um pouquinho eu decidi que não queria falar mais nada. Foi quando eu descobri uma coisa sobre o Fernando...

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