1. Você não é o que vê

1.4K 164 229
                                    

❀ Capítulo 1 | O Silêncio das Flores 

O despertador tocou às seis da manhã, mas Zoey já estava acordada desde às cinco e meia. Sentou-se na cama, sonolenta e descabelada, fitando a mochila sobre a cadeira da escrivaninha do outro lado do quarto. A moça se arriscava a pensar que ninguém naquele mundo se sentia totalmente confortável no primeiro dia de aula – sobretudo quando terá que enfrentar o primeiro ano do ensino médio. Encarar aquele dia, entretanto, seria dez vezes mais difícil para Zoey. Apesar de ser a mesma escola e praticamente os mesmos colegas, sempre tinha algo novo: uma matéria, alguns professores, outros alunos.

Tudo que era novo a deixava apreensiva. Todo ano era a mesma coisa. Mas por que tinha a impressão que seria ainda mais difícil suportar?

Ela se levantou e conferiu mais uma vez os itens na mochila e o uniforme dobrado sobre a escrivaninha.

- Ensino médio, hein? – Zoey ouviu uma vozinha aguda atrás dela. Olhou por cima do ombro, observando a garota sentada na cama; justamente onde ela estava segundos antes. – Está ansiosa?

- Amedrontada – Zoey respondeu sem abrir a boca. Ela não precisava: aquela garota não existia de verdade. Bastava pensar na resposta que Anne a recebia. Era sempre assim, desde os seus três anos de idade; quando tudo aquilo começou de fato.

Era só pensar em Anne que ela surgia – os cabelos ruivos cacheados, bochechas rosadas e olhos azuis gélidos. Ela nunca crescia, nunca envelhecia. Seria para sempre uma garota de doze anos. Talvez Zoey fosse velha demais para criar personagens em sua cabeça e conversar com eles, mas Anne sempre insistia em aparecer e não havia nada que Zoey pudesse fazer.

Mas ela não se importava. Zoey gostava de conversar com alguém, mesmo que fosse por telepatia - e mesmo que esse alguém não existisse de fato.

- Quem sabe serão os mesmos professores... – Anne sugeriu, cruzando as pernas. – Geralmente não entram muitos alunos novos.

- É o ensino médio – Zoey respondeu, vestindo o uniforme. – Os professores sempre mudam.

Anne deu de ombros.

- Bem, boa sorte. – e desapareceu como se nunca estivesse estado ali.

Zoey suspirou e foi fazer café. Naquele horário, seus pais e sua irmã mais nova ainda não haviam acordado. Ela já podia ouvir o grunhido baixo e agudo de Mike - o único cachorro da família - e sua pata raspando na porta da sala.

Ao entrar no banheiro, pendurou a escova de dente na boca e prendeu o cabelo cor de caramelo. Deixou uma longa franja cair em seu rosto, ocultando boa parte dele, e ajeitou o moletom roxo sobre o corpo. Zoey evitava sempre se olhar no espelho – achava seu rosto sombrio demais, os cabelos feios – e as inevitáveis espinhas em seu queixo e as sobrancelhas desordenadas e finas deixava-a ainda mais estranha. Por essa e outras razões, evitava qualquer coisa que pudesse refletir sua imagem e sempre tentava se esconder ao máximo por baixo de roupas e o véu de cabelos. Zoey não sabia explicar o que sentia ao ver seu próprio rosto tão límpido – só sabia que, às vezes, tinha a impressão que não via a si própria. Fato que a levou, mais tarde, a chegar a uma conclusão: nem sempre as pessoas são o que elas veem.

Era difícil para Zoey manter contato visual com outros seres vivos – a não ser que fossem animais. Dessa forma, o baixar de olhos diante de um grupo de pessoas ou a vinda de alguém em sua direção era quase automática. Era difícil sorrir exibindo os dentes, olhar nos olhos de outra pessoa durante muito tempo; ou até mesmo demonstrar sentimentos. Mas, àquela altura, tudo aquilo era normal para ela. Zoey já havia se acomodado com seu jeito, e só a ideia de tentar mudar a aterrorizava. Para ela, jamais conseguiria mudar.

O Silêncio das FloresOnde histórias criam vida. Descubra agora