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Uma fileira de túnicas cinza, formada por todos os Auxiliadores escolhidos por Camilo, permanece cuidadosamente alinhada sobre o palanque. À frente deles está o próprio Camilo, ocupando a posição de Auxiliador pessoal do Sacerdote. O Sacerdote, por sua vez, tenta reprimir os tremores da garota que se esconde sob seu manto dourado.

Logo abaixo das presenças masculinas, um punhado de mulheres aguarda, vestidas de maneira precária, com o máximo de extravagância que podiam arcar. As diferentes origens e classes econômicas de cada uma se estampam nas cores e qualidade dos tecidos que vestem.

Pandora fecha os olhos e tenta manter a concentração. Não há motivos para sentir medo, basta apontar para a garota certa e tudo estará acabado em poucos minutos, sem que nenhuma dentre as milhares de pessoas que a observam descubra a fraude de que ela não passa.

Camilo profere um discurso longo e acalorado, ao qual ela não presta muita atenção. Em meio a centenas de palavras desconexas, ele fala sobre o amor, a união e a sacralidade do casamento. Pandora estremece, contendo um riso maldoso.

O amor, a união e a sacralidade de um casamento que, além de ser totalmente motivado por interesses políticos, não passa de uma fraude.

Ninguém está se casando hoje, muito menos duas mulheres numa cidade que condena à morte relações entre iguais. Hoje, esta cerimônia não passa de mais uma afirmação de como a cidade é construída sobre mentiras e ilusões. A mentira sobre os textos sagrados, a mentira sobre a Voz, a mentira sobre o Sacerdote...

A Ordem dos Surdos havia destruído o véu que encobria muitas dessas mentiras, seus rostos escondidos sob as máscaras negras haviam exposto as entranhas malcheirosas daquela cidade. E, mesmo assim, falharam.

Quase duas décadas depois da rebelião liderada por Lúcio, ali estavam novamente os Auxiliadores diante do Templo, revivendo rituais antigos, preservando as tradições do passado com todo o esplendor que lhes era possível, embora o abalo das estruturas sociais tenha claramente deixado sequelas irreparáveis. Como as rachaduras que desciam pelas laterais do Templo e se alastravam pelo chão, as cicatrizes abertas pelos Surdos não poderiam ser encobertas ou disfarçadas. Estavam ali para quem quisesse ver. E, como qualquer trinco, ameaçavam a solidez da pedra sobre a qual os Auxiliadores agora pisavam.

O acesso ao mundo externo havia garantido eletricidade, tecnologia e armas, coisas que haviam mudado definitivamente a forma como aquelas pessoas compreendiam a vida, apesar de serem caríssimas e acessíveis apenas aos mais poderosos. Os grupos de trabalho haviam mudado radicalmente, e, pela primeira vez, havia pessoas sem ocupação, que vagavam pelas ruas pedindo esmolas. O próprio dinheiro era algo totalmente novo, e completamente desajustado, o preço de alimentos básicos variando imprevisivelmente da noite para o dia, ora gerando filas enormes para abastecimento, ora fazendo pilhas e pilhas de nutrientes preciosos apodrecerem em depósitos largados aos céus.

Sem um sistema legal ou legisladores, a criminalidade subiu para níveis alarmantes. Assaltos, sequestros e assassinatos tornaram-se rotina. Pessoas matavam outras pessoas para arrancar-lhes algumas notas de papel que mal tinham um valor fixado. O Palácio, antes protegido apenas pela Voz, agora era cercado por atiradores de elite armados de fuzis. E os Surdos, ou o que restou deles, aproveitaram seu anonimato para fugirem antes que fosse tarde demais, deixando o governo à deriva para quem tivesse mais balas para encher os fuzis.

Era por isso que o retorno do Sacerdote se tornou necessário, como dizia Camilo, para acalmar os ânimos e restaurar o sentimento de que, de alguma maneira, sempre haveria alguém administrando do alto. A ideia de ter um ser superior comandando os eventos sempre foi mais confortante do que a ideia de obedecer alguém que carrega um fuzil.

- E agora cabe a você, Pandora, retomar o controle daquilo que seu pai destruiu. Você irá desfazer tudo que ele fez. - é o que Camilo repetia dezenas de vezes, só para que ela não se esquecesse - Seu sangue é a herança dele, e é sua responsabilidade quitar a dívida que ele deixou. Seu pai foi um assassino sanguinário, traidor do Palácio e também dos Surdos. Mostre que você pode ser melhor que isso. Prove que você é capaz de se manter fiel pelo menos a uma coisa.

Ele falava sobre fidelidade agora, e honra, e devoção.

Uma nuvem pesada encobre o sol, sua sombra voando sobre a multidão como uma ave de rapina impossível de ser evitada. As candidatas variam em comportamento. Algumas prendem o rosto ao chão, julgando que a humildade seja uma característica vantajosa. Outras encaram o Sacerdote, sorrindo e piscando com desejo. Pandora pousa os olhos brevemente sobre a penúltima, que carrega um lenço amarrado ao cabelo. Um lenço vermelho.

A garota retorna seu olhar com frieza. Pandora desvia os olhos imediatamente, cavando as unhas sobre as palmas das mãos, transpirando.

- O Sacerdote está pronto para sua escolha? – Camilo pergunta, dirigindo-se a ela pela primeira vez durante o discurso.

Ela move a cabeça, sem dizer uma palavra.

Todos abaixam o rosto e fecham os olhos, da mesma maneira que fazem quando as portas do Templo se abrem. Até mesmo as pretendentes curvam o rosto, esperando pela decisão que não lhes cabe.

Pandora treme, seu coração pulsando em seu dedo indicador conforme ela o ergue e aponta na direção da garota com o lenço vermelho.

- Que a Voz abençoe esta união! – declara o Auxiliador, forçando todos a abrirem os olhos curiosos para a escolhida.

Pandora mantém o olhar fixo sobre os próprios pés. 

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Pandora (COMPLETO) - Livro III - Trilogia DantálionOnde histórias criam vida. Descubra agora