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- Os Surdos se reunirão durante a madrugada. – Malphas retorna ao esconderijo, trazendo consigo mais um saco de mantimentos que logo é aberto e espalhado sobre o assoalho – Será nessa hora que precisaremos agir. Já temos as divisões estabelecidas?

- Sim. – Bruno alcança uma maçã, jogando-a para cima e pegando novamente com facilidade impressionante. Não é de admirar que fosse um bom atirador, tendo olhos e mãos perfeitamente alinhados – Vocês três irão para os Surdos descobrir a identidade de Camilo enquanto eu e o assassino aqui vamos explodir o Palácio.

- Você fala como se nunca tivesse matado ninguém. – Lúcio cruza os braços contra a parede.

- Eu não matei meus aliados.

- Dantálion não compartilhava de sua opinião.

Bruno salta sobre ele, as mãos prontas para estrangulá-lo.

Lúcio sorri com prazer, sacando uma faca comprida do cinto e a apontando para o peito do outro.

- Aposto que vocês dois também brincavam disso, Alastor. Quem costumava ganhar? Ele ou você?

- Eu vou te matar depois que tudo isso acabar!

- Depois que tudo isso acabar, você pode matar quem quiser. Eu não me importo com mais nada.

- Vocês dois! – Malphas se coloca entre eles, empurrando-os com os braços estendidos – Já não basta terem um exército para derrubar, ainda precisam se matar antes?!

Helena revira os olhos, cutucando Pandora no ombro.

- Eu tenho a impressão de que seria melhor darmos no pé, impostora...

Pandora retorce os lábios enquanto encara o pai.

- Eu estou quase me convencendo do mesmo.

- Vamos? Você me ajuda a correr e eu atiro neles.

- Está ficando louca? Nós não vamos atirar neles!

- Por que não? Eles estão quase atirando uns nos outros... Seria um favor.

- Helena...

- Está bem. Eu vou ficar quieta enquanto seu pai nos mata. Mas não peça minha ajuda quando a coisa ficar feia de verdade.

Malphas continua a conter os dois, que trocam insultos e se avançam.

Dois grandes Surdos, reflete Pandora, sua postura completamente imóvel. Seria a dor que passaram o suficiente para ruir sua personalidade àquele ponto? O pai não era dos que tinham a mente mais saudável, ela sabia desde cedo. Mas vê-lo desafiar Bruno daquela maneira despertava uma impressão nova. Ele não parecia mais um homem de meia-idade, cansado e abatido. Ele sorria, seus olhos brilhavam e suas palavras fluíam com autoridade. Era como se, por regressar ao palco de seu sofrimento, Lúcio regressasse novamente a ser quem era antes...

Antes do que quer que fosse que o havia transformado naquele homem exausto.

Seria o mesmo que acontecia com Alastor? Ela não compreendia a disputa entre os dois, embora não fosse difícil adivinhar a razão.

Como Malphas havia dito, ambos tinham perdido algo importante. Ambos tiveram o coração partido, e não sabiam como lidar com a dor. E mais que a dor... Havia a culpa.

A culpa esmagadora que empurrava Lúcio para o abismo.

Até quando ele seria capaz de se segurar nas bordas para não cair?

E quando caísse, o que encontraria lá embaixo?

- Parem, todos vocês!

A sala paralisa em total silêncio, todos os olhos voltados com espanto para a figura de Pandora, rígida ao centro.

- Eu estou assumindo o comando.

- O quê? – Bruno ri, prendendo o pulso de Malphas para afastá-lo de seu rosto – Uma tonta como você, comandando? Só pode ser piada!

- Piada é o que vou fazer com você se não calar a boca agora, seu moleque mimado. – Helena dá um passo à frente, parando ombro a ombro com Pandora.

- Então faça! – Bruno grita, rindo histericamente.

Sem que qualquer um dos demais tente impedi-la, Helena caminha firmemente até ele, fechando um dos punhos e acertando um soco em seu nariz.

Ele abaixa para se defender, muito lento para que possa escapar do próximo golpe, que acerta sua mandíbula, fazendo-o cair para trás, parcialmente inconsciente.

- Nós somos mais jovens que vocês, sim. – Helena lança um olhar de desafio para todos – Mas longe de nos fazer mais fracas, isso faz de nós mais fortes. Eu posso me machucar, mas garanto que consigo nocautear os três antes. E eu obedeceria Pandora se fosse vocês, porque de agora em diante é ela quem dá ordens aqui.

Lúcio acena, curvando gentilmente o rosto.

- Eu não a teria escolhido por menos. – diz, resignado – Ela tem a autoridade de Sacerdote, afinal. Nós seguiremos os planos de acordo com sua vontade.

- Ótimo. – Helena chuta a perna de Bruno, ainda incapaz de se levantar – Alguém mais se opõe?

Malphas entrelaça as mãos atrás do corpo, sorrindo com simpatia, sem esconder o nervosismo que a toma, porém sem demonstrar qualquer tipo de objeção. Estar fora do domínio dos dois dementes era o que mais desejava.

- Em primeiro lugar, - Pandora ergue a voz – devolvam a arma de Helena. Carregada. Ela precisa se defender, e não vai conseguir com o quadril ferido.

- Você só pode ser louca de dar uma arma para ela! – Bruno geme, implorando com os olhos para Malphas.

- Se você se comportar, eu juro que não atiro nas suas bolas. – Helena pega a pistola que Malphas lhe estende – Caso você tenha alguma, claro.

Ele não responde, acuando-se protetivamente num canto.

- Certo. – Pandora retoma – Agora vamos preparar a sequência de eventos. Lúcio e Bruno vão para o Palácio instalar os explosivos – ela desvia os olhos de Lúcio, incapaz de usar a palavra pai – enquanto eu, Malphas e Helena vamos até os Surdos. Vocês dois precisam manter suas identidades em segredo, porém, e nós também. O que significa que precisamos usar roupas de Surdo.

- Nós só temos três túnicas. – Malphas tamborila os dedos pela maca desocupada.

Um grunhido escapa involuntariamente de Lúcio. Todos se voltam para ele.

- Você sabe onde podemos encontrar mais duas túnicas? – Pandora se aproxima.

- Sei... – ele percorre os dedos crispados pelo rosto, seu corpo estremecendo como se estivesse sentindo dor.

- Onde?

- Não me obriguem a voltar lá! – um grito descontrolado lhe escapa, sua sanidade se rompendo mais uma vez – Qualquer coisa, menos isso! Nós podemos fazer de outro jeito!

- Lúcio, onde?

Perdendo o ar, ele se apoia contra a parede e pressiona uma das mãos no estômago, o gosto amargo de ácido umedecendo sua língua.

- Por favor... Não me obriguem a voltar na casa dele...

 Não me obriguem a voltar na casa dele

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Pandora (COMPLETO) - Livro III - Trilogia DantálionOnde histórias criam vida. Descubra agora