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- Pegue. Eu trouxe um pouco de pão.

Sentadas num barranco próximo ao acostamento, as duas retomam o fôlego, ouvindo atentamente os sons da estrada cada vez mais escura.

O sol já estava desaparecendo, alguns raios amarelados acendendo parcialmente as nuvens que se arrastam sobre a distância da estrada.

Pandora observa aquele mundo que antes era seu, antes de existir qualquer cidade, crise política ou guerra civil em sua mente. Era um mundo de estradas vazias e ruas abandonadas, um mundo silencioso. Um mundo que, apesar de inseguro, lhe trazia a sensação de quietude de que não se recordava há anos.

- Como foi que você conseguiu trazer pão?

- Eu tinha um pouco escondido no quarto, pra caso alguém me mantivesse presa o dia todo de novo.

Pandora não sorri diante da provocação, seus olhos baixos.

Helena pigarreia, erguendo as sobrancelhas para o tronco nu da outra.

- O que houve com suas roupas? Resolveu fazer algum tipo de revolução feminista?

- Cale a boca.

A ruiva ri, sem deixar de notar os tremores que percorrem o corpo de Pandora. A temperatura estava caindo muito rápido, e o vento constante da estrada não ajudava. Tirando a jaqueta de couro que vestia, ela cobre os ombros de Pandora, esfregando os braços para conter o próprio frio. A outra aceita a oferta, embrulhando o corpo na jaqueta enorme que fervilha com o calor de Helena, liberando aos poucos seu perfume forte.

Certamente ela havia tido tempo para se preparar. Trazia um pouco de comida consigo, e vestia roupas incomuns. No lugar de seu habitual vestido cinza de esposa do Sacerdote, ela agora exibia imponentes calças pretas, feitas de algum tecido maleável e brilhante que se colava a seu corpo com perfeição, fazendo-a parecer muito mais esbelta do que demonstrava. Uma camiseta simples de algodão estava por baixo da jaqueta que havia emprestado, e um par de botas ameaçadoras de tão resistentes pendiam com respeito de seus pés. Roupas práticas, refletia Pandora com inveja, agarrando-se à jaqueta que trazia consigo o calor e aroma fortes de Helena, tentando dobrar as pernas para enfiá-las sob o tecido também.

- Qual o seu problema, impostora? Não está feliz por finalmente fugir? Não era o que você queria? Você parece mais triste que um pardal que acabou de cair do ninho.

- Foi mais ou menos isso que aconteceu. – ela diz com metade do rosto enterrado na jaqueta – A diferença é que, entre o ninho e o chão, tinha tiros, motocicletas e soldados tentando me matar. Além de centenas de pessoas me pisoteando. - ela se cala por alguns minutos, engolindo com dificuldade a culpa que sobe por sua garganta - Eu acho que machuquei uma criança, Helena... Eu acho que ela morreu por minha causa... Eu...

- Você é uma pessoa horrível, impostora, muito horrível. – Helena ri com crueldade - Você machucou uma criança, pobrezinha! Imagine se tivesse deixado uma trilha de meia dúzia de homens mortos no caminho até aqui? Isso faria você se sentir melhor? Porque eu não sinto nenhum remorso.

- Eram homens adultos, eles tinham armas, tinham escolha, eles não eram...

- Inocentes?

- Eles não eram crianças! Pelo amor da Voz!

- Mas mesmo não sendo crianças, você não conseguiu fazer o que tinha que fazer, não é?

Pandora recobre os olhos, que esquentam com a umidade.

- Por que você não conseguiu atirar quando eu mandei, Pandora?

- Eu não enxergo bem.

- Eu sei que você não enxerga bem, mas também sei que não foram seus olhos que travaram no gatilho.

Pandora (COMPLETO) - Livro III - Trilogia DantálionOnde histórias criam vida. Descubra agora