O reflexo do sol em seus olhos a faz acordar. Alongando os membros doloridos, Helena checa os arredores. Motocicleta encostada à direita, confere. Mochila com o que sobrou de comida e água, confere. Manta que vai salvar nossas vidas, confere. Cigarros e isqueiro, confere. Garota mimada...
Ela posiciona a mão sobre a testa para enxergar melhor, sondando a praia. Nenhum sinal de Pandora. Volta a se alongar, estalando a língua nos dentes. Um problema a menos para resolver.
Só então seus olhos se adaptam à claridade e ela finalmente enxerga a trilha de pegadas que segue pela areia, desaparecendo na soleira da antiga cabana de madeira. Sua mão desliza pelo rosto. O problema acabou de arranjar mais um problema...
Reunindo os objetos em uma pilha compacta, ela se levanta, sacudindo as roupas e o cabelo, pisando os pés descalços sobre a areia morna que em breve estaria pegando fogo.
Vira o rosto uma última vez para a moto antes de perder a linha de visão, tateando pelo peso das chaves no bolso, roubadas por Cérbero, torcendo para que o veículo esteja lá quando voltar. Ladrão que rouba ladrão...
A porta está aberta, Pandora sentada em posição fetal contra uma das paredes, seus olhos vidrados no que restou do esqueleto sem carne que ocupa praticamente todo o chão da cozinha, sua expressão vazia e distante da realidade, cataléptica.
- Eu disse para não vir aqui, idiota...
Pandora murmura algo inaudível. Pelo menos ainda podia reagir.
- Por que é que você me desobedeceu?
- Eu precisava ver. – sussurra sua voz fraca.
- Ver o quê?
- Ver minha mãe.
- Isso não é sua mãe, isso é um monte de ossos. Sua mãe não existe faz tempo. Ela só existe na sua memória agora, e é o único lugar em que você deve procurá-la. É o único lugar em que ela sempre vai estar viva.
- Eu precisava ter certeza.
- Você duvida tanto assim de mim?
- Não... – seus olhos inexpressivos desviam para ela, enxergando através de milhares de quilômetros de distância – Eu só precisava saber que ela realmente morreu. Eu precisava ter certeza, ou então continuaria esperando que ela voltasse.
- Você é do tipo que precisa de velórios, pelo visto...
- Eu nunca vi o corpo de meu pai... E é por isso que fico confusa sobre a realidade. Como posso dizer para minha mente que ele está morto ou vivo se eu não vi?
- Nem sempre você precisa ver. Se alguém some por uma década, é porque está morto.
Pandora move a cabeça lentamente, seu corpo preso aos ossos como se fosse ela o cadáver.
- Você foi corajosa, impostora... – Helena entrelaça os dedos pelo cabelo, suspirando – Eu admiro isso. Mas agora, já que você a viu, vamos dar um fim decente a ela?
A garota ruiva percorre o cômodo, tomando cuidado para não pisar em nenhum dedo esticado sobre o assoalho.
- Vá lá fora e cave um buraco bonito, está bem? – ela estende uma pá que encontrou em algum lugar – Eu vou tentar levá-la para fora sem perder nenhum... Pedaço...
Pandora agarra o cabo da pá com firmeza, como se dependurasse toda sua vida na ferramenta. Sem dizer uma palavra, ela sai, o som da areia sendo remexida chegando um minuto depois.
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Pandora (COMPLETO) - Livro III - Trilogia Dantálion
Science FictionAnos após a fracassada Revolução Surda, a filha de Lúcio é trazida ao Palácio para assumir seu lugar como Sacerdote, numa tentativa de conter a violenta guerra civil entre Surdos e Reformadores. O problema é que mulheres não podem ser Sacerdotes, e...