Nina sacudia dentro do ônibus enquanto olhava pela janela. Já não sabia onde estava, nem a quanto tempo estava. Conhecia seu destino, mas não o caminho que percorria, e havia sido assim sua vida toda.
Há dois meses havia perdido sua irmã gêmea em um terrível acidente enquanto voltavam de um restaurante, onde tinham comemorado o aniversário com alguns amigos. Clara, sua outra metade, estava sentada ao seu lado, dirigindo, e havia lhe lançado um sorriso travesso que simbolizava os planos de continuar a noite, isso claro, pouco antes do fecho de luz que antecedeu a colisão. Nina voltou a ver um fecho semelhante, dias depois quando acordou no hospital. Dois meses de terapia para um trauma incurável e fisioterapia para as pernas que se recusavam a funcionar corretamente. De qualquer forma, ao fim do tratamento, lá estava ela, embarcando num ônibus para outra cidade, mesmo que os joelhos ainda doessem. Decidiu que aquela viagem seria sua última experiência automobilística por algum tempo, pois no velho sitio da família, estaria bem longe de estradas e veículos.
Entretanto, ao desembarcar na rodoviária da pequena cidade, percebeu que planejou mal o alcance de seus objetivos e ainda faltava encarar um demônio de metal. O taxi. Felizmente foi uma batalha breve, e ao vê-lo sumir entre as árvores que cercavam a estreita estrada de terra, sentiu-se vitoriosa. Virou-se e encarou a antiga construção que se escondia tímida atrás de um imenso salgueiro chorão que, estranhamente, parecia tão antigo quanto ela. Nina não era especialista em botânica, como sua irmã, mas ao estudarem juntas adquiriu algum conhecimento sobre plantas e sabia que essa espécie não vivia muito, mas ignorou a informação ao vê-lo balançando suavemente os fios de sua volumosa juba como se dançasse comemorando sua chegada. Lembrou-se dos verões passados ali. Verões que não se repetiam há mais de uma década. Quando a proprietária, sua avó, decidiu se aventurar na cidade, abdicou da pacata moradia, deixando-a para que fosse devorada pela mata se não fossem os cuidados do persistente zelador, cuja velhice combinava com o tempo congelado dentro daquelas paredes. Ainda assim, se perguntou se algum avanço havia chego ali e quase ficou feliz ao constatar que seu celular recebia sinal da rede, mesmo que fosse apenas em pontos específicos.
Ao adentrar a residência, aguardou para ver se o aparelho detectava o sinal de algum roteador, o que seria improvável, mas não completamente impossível. De qualquer forma, essa esperança foi em vão. Acionou o interruptor e aí sim teve uma infeliz surpresa. Cogitou sentar na varanda e aguardar até que a frustração se esvaísse, mas lembrou da modesta biblioteca onde se escondia com Clara durante os temporais. Havia esperança. Teria algum passatempo além de fazer reparos e observar os insetos.
Lançou a mala sobre a cama do primeiro quarto que encontrou. Não estava nem um pouco interessada em desfazê-la, mas optou por se livrar do problema de uma vez por todas. Abriu o roupeiro de duas portas, feito de madeira maciça, que cheirava a mofo e esquecimento. Levou quase um minuto para processar a presença daquele vestido que mais parecia figurino de filme mudo. Por que aquela única peça havia sido deixada para trás? Optou por não mover o objeto, temendo que ele se desmanchasse, seria mais fácil metê-lo direto em um saco... assim que encontrasse um. No momento estava exausta e após alguns suspiros e trocas de olhares com a mala, decidiu jogá-la dentro do roupeiro e fechou as portas, convencendo-se de que aquilo era suficiente. Sentiu o joelho manifestar-se. De fato havia abusado, todo aquele tempo com as pernas curvadas no ônibus, sobe e desce de veículos, em um único dia havia estourado sua cota da semana. Sentou-se sobre os lençóis gentilmente trocados um dia antes pelo zelador, perguntando-se porquê ele não lhe avisou sobre a falta de energia. Enquanto aguardava a dor diminuir, encarou a janela e notou ao longe o sol começando a se esconder atrás de uma montanha. Os galhos do salgueiro, que se levantaram com o vento, bloquearam sua visão, e por um instante, teve a impressão de que ele a encarava de volta.
Um sonzinho irritante veio do celular fazendo-a desviar o olhar para o aparelho que tirara do bolso. Era o despertador para lembra-la de tomar os remédios, jamais seria capaz de tomá-los no horário se não fosse por isso. Também ficou feliz ao constatar que a bateria estava cheia, já que essa seria, provavelmente, sua única fonte de luz durante aquela noite. Alcançou a bolsa e colocou dois comprimidos na boca. Gostava de mastiga-los e sentir o amargor. Quando os joelhos se esqueceram de importuná-la, levantou e caminhou até o corredor, olhando para os dois lados como se fosse atravessar uma rua. Pulou uma ripa do assoalho e seguiu a linha da madeira até a última porta. A biblioteca. Bateu três vezes, mesmo sabendo que Clara não estava ali para correr atrás dela como faziam quando eram pequenas. Mesmo assim ouviu passos e amaldiçoou sua mente por tentar enganá-la. Abriu a porta e entrou.
Ergueu a visão e metade de seu coque se desfez, fazendo o cabelo escorrer de um lado. Ela riu da organização despretensiosa dos livros nas prateleiras. Do tapete empoeirado e da poltrona manchada de vinho que ela e Clara beberam em segredo quando fizeram dezesseis. Da mesma velha cortina surrada que cobria a pequena janela que dava para os fundos da casa e do mesmo velho abajur da década de quarenta, com a porcelana trincada. Gargalhou. Riu com ânsia enquanto meia dúzia de lágrimas brotaram. Limpou o rosto e praguejou. Caminhou diante da prateleira, correndo os dedos pelas bordas dos livros, tão antigos quanto todo o resto, tão esquecidos e enterrados ali quanto sua infância. Havia um, mais recente, que se destacou. Puxou-o e ergueu uma sobrancelha instantaneamente. Os céus sabiam o quanto ela odiava aquela obra... e o quanto sua outra metade a amava. Clara adorava as dores do amor. Nina adorava os mistérios da vida e da morte. Quando Pitie morreu, uma gata persa que ambas adotaram, Clara chorou e Nina a consolou pouco antes de meter o pequeno cadáver numa caixa e levá-lo sorrateiramente até um terreno baldio onde secretamente enterrou o pequeno animal. Mas o fez apenas após encará-lo por alguns minutos, como se em seu apodrecimento, talvez algum segredo do pós-vida fosse revelado. Mas logicamente nunca contou isso a Clara, mesmo que provavelmente ela soubesse. Ela sempre sabia. Elas sempre sabiam. Encarou o livro até que as letras ficaram nubladas pela escuridão que aos poucos consumia o cômodo. Virou a poltrona de modo a aproveitar o pouco de luz que restava e sentou-se abrindo o romance em uma página aleatória.
Abriu os olhos e percebeu-se mergulhada no breu. Instintivamente procurou pelo celular para ver as horas e iluminar o ambiente, mas notou uma sutil luz vindo da janela. Um brilho pálido e levemente âmbar. Seu cérebro subitamente se agarrou a explicação mais óbvia. A energia havia voltado e alguma lâmpada estava acesa do lado de fora. Isso era ótimo. Levantou e foi até a janela verificar, mas não havia lâmpada acesa. Nem volta de energia, nem explicação lógica que justificasse o salgueiro brilhar como um velho farol em seu jardim. O pânico aumentou quando sua mente funcionou devidamente e se deu conta de que a janela da biblioteca dava para os fundos e que aquela arvore deveria estar diante da casa, bloqueando a vista da construção. Sacudiu a cabeça a amaldiçoou sua mente confusa, novamente tentando enganá-la. Franziu a sobrancelha e indignada marchou até a porta da frente abrindo-a de supetão na intenção de provar para si mesma que nada daquilo realmente havia acontecido, mas ao abri-la ouviu um riso conhecido e percebeu a barra de um vestido que parecia figurino de cinema mudo antes de sentir dois braços frios a envolveram. O salgueiro estava lá, com suas folhas âmbar balançado suavemente como fazia quando a brisa de outono soprava seus galhos. E ele estava lá há muito tempo. Era um velho sábio e paciente. Um familiar, um guia para os que completavam sua jornada. Ele estendeu seus galhos para as almas dos animais que desencarnaram ali. Dos Homens de pele vermelha que o adoraram. Dos Homens brancos que transitaram por ali. Dos antepassados de Clara e Nina que fizeram daquele terreno seu lar e das gêmeas que escreveram em seu tronco uma promessa de união que ultrapassaria a eternidade. E então, ouviu-se vindo de lugar nenhum, dois choros uníssonos, choros de recém-nascidos.