A segunda impressão também é a que fica

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A mente de Mel paralisou por alguns segundos. Ficou completamente sem reação, e ela pensou em como aquele diabo daquela cidade era pequena aquele ponto.
- Boa noite, doutora - Respondeu o policial. Ele parecia se divertir as custas do constrangimento dela.
- Boa noite, policial.
Ela resolveu que já havia tido demais daquele homem por um dia e decidiu encerrar aquilo, trancou o carro e entrou em casa. Foi tirando os sapatos e a roupa pelo corredor e foi direto para o banheiro, ligou o chuveiro e pediu aos céus para que tirassem aquela energia negativa de cima dela. Desde que havia chegado era a primeira vez que realmente se sentia exausta, só queria ter uma boa noite de sono. Comeu qualquer coisa e apagou instantaneamente.
Não podemos dizer a mesma coisa do seu vizinho. Tomas também estava esgotado, mas sua mente não o deixou ter o merecido descanso. Assim que soube do tiroteio na boate ele correu para lá e soube que Dionizio havia sido pego roubando e haviam atirado nele enquanto ele fugia. Após apurar mais um pouco foi para o hospital descobrir se seu informante teria chance de sobreviver para contar o seu lado daquela história que estava tão esquisita.
Mas, quando chegou lá foi recebido pela nova doutora, ela não sabia ainda, mas iria saber que ali ele tinha passe livre, como em todos os outros lugares daquela cidade, ele só não insistiu mais em colocá-la no lugar dela porque percebeu que Dioni não acordaria tão cedo, mas ele já havia decidido, no dia seguinte ia fazer suas perguntas, a doutorazinha querendo ou não. Com esse pensamento ele conseguiu dormir.
No dia seguinte Mel acordou com os ânimos renovados. Caprichou mais no visual, fez uma trança no cabelo, passou até um brilho labial. Sentia que aquele dia seria incrível. Quando saiu de casa notou, sem querer, que o vizinho babaca já havia saído. Chegou ao hospital quase cantarolando, seu bom humor sumiu quando ela deu bom dia as recepcionistas e estas fizeram uma cara de assombro. Ela logo imaginou que algo de ruim estava por vir. Pegou seu material de trabalho e seguiu para ver seus pacientes, começou pelo garoto do tiro, quando abriu a porta percebeu o motivo do susto das atendentes, o policial imbecil estava no leito, sentado em uma poltrona olhando para o garoto adormecido.
- Só pode estar de brincadeira - Grunhiu ela.
- Bom dia, doc. Dormiu bem?
- O que eu falei ontem?
- Sim, e eu ouvi muito bem. Já assinei todos os papéis lá fora, inclusive dei todas as informações sobre o seu paciente.
- Você é policial, não fez mais do que a sua obrigação.
- Oh querida. Você não sabe nada das minhas obrigações. Eu estou aqui para saber o que aconteceu com esse moleque e preciso que ele acorde.
- Foi aplicado um sedativo nele, já deve estar quase passando o efeito. Assim que ele acordar eu aviso o senhor.
- Não se preocupe, Doc. Eu vou ficar aqui esperando.
- Affs. Assim que ele acordar mande uma enfermeira me chamar. Preciso avaliar se ele estará em condições de falar com o senhor.
- Sim, senhora - Respondeu ele com desdém.
Ela saiu do quarto e teve certeza que aquele seria um longo dia.
Continuou a visitar seus pacientes e as horas passaram rapidamente, perto da hora do almoço foi que lembrou do policial e do garoto. Caminhou apressadamente até o leito do garoto e não se surpreendeu nada ao ver o paciente acordado e o policial bem próximo a ele.
- Eu disse para me chamar quando ele acordasse.
- Poxa, eu esqueci completamente. Mas, como você pode ver o Dionizinho aqui está muito bem. Não é Dioni?
- Sim senhor.
Ela sentiu o medo na voz do garoto. O que aquele homem tinha que todos ficavam com medo na presença dele? Isso ela não entendia.
- Preciso que você se afaste para que eu possa examinar.
Ele se afastou e ela se aproximou.
- Tudo bem? Meu nome é Melissa, eu que atendi você ontem. Você perdeu muito sangue mas não corre risco de vida, agora vou dar uma olhada no seu machucado e ver se precisa de outro curativo tudo bem?
- Sim, senhora. E obrigada!
- Por nada. Só estou fazendo meu trabalho.
Ela avaliou e viu que ele estava se recuperando melhor do que esperava.
- Muito bem. Mais alguns dias e você estará livre para ir para casa - Nesse momento Dioni arregalou os olhos, ela viu tanto medo ali, que beirava o desespero - E você! - Disse olhando para o brucutu - Pode continuar a conversa com ele, na minha presença.
- Com todo o respeito doutora, estou no meio de uma investigação, e eu não conheço você o suficiente para saber se é confiável.
- Eu não confio em você sozinho com ele. Sou médica, não tenho interesse nenhum em atrapalhar investigação nenhuma. Então, é pegar ou largar.
Ele sabia que poderia muito bem expulsa-la do quarto e continuar a interrogar Dionizio sozinho, mas achava divertida demais a tentativa da doutora de se impor diante dele. Então simplesmente fingiu que ela não estava lá e continuou.
- Então, Dioni, você estava contando que os caras de terno visitaram o seu chefe mais algumas vezes, inclusive depois da inauguração da boate.
- Isso mesmo. E eles sempre chegavam com umas malas e com um caminhão atrás do carro deles. Eu não sabia o que tinha dentro do caminhão. E preferia ter continuado sem saber. Um dia um dos capangas me mandou  buscar uma caixa de bebidas no depósito. Eu fui e quando entrei lá comecei a ouvir umas pancadas na parede e um sussurro, alguém estava pedindo por socorro. Eu me assustei e saí de lá o mais rápido possível. Então, minha curiosidade venceu o medo e eu fui lá de novo, escondido é claro. Cheguei na parede que tinha ouvido as pancadas e dei umas batidas, demorou um pouco, mas alguém respondeu. E começou a dizer socorro, bem baixinho, deu de perceber que era uma mulher. Eu perguntei como ela tinha ido parar lá e ela disse que haviam enganado a família dela, dizendo que ela seria uma modelo e tal e eles caíram direitinho, aí levaram ela e deram alguma coisa pra ela beber que fez ela dormir. Ela acordou lá, naquele lugar e disse que tinham pelo menos mais umas dez com ela, que elas estavam presas em celas.
Nesse momento a doutora sentiu as lágrimas rolando pelo seu rosto. Já tinha visto aquilo em muitos filmes, mas nunca imaginou que aquilo aconteceria tão perto dela. Olhou para o policial e viu que ele permanecia com a mesma cara de antes, nem um único músculo se moveu. Queria entender como alguém ficava sem emoção daquele jeito.
- E como foi que isso aconteceu? - Perguntou Tomas apontando para o ferimento.
- Eu fui lá mais umas duas vezes e pelo que ela me disse elas estavam em um porão, e que os capangas só desciam lá pra deixar comida e água. Então resolvi que ia tirar elas de lá.
- Mas que ideia genial! - Ironizou seu ouvinte.
- Eu esperei eles deixarem o almoço e quando saíram consegui roubar as chaves, desci as escadas e quando entrei no porão eu quase vomitei, o cheiro de mijo e bosta tava no ar, as celas eram cubículos, uma pra cada e tinha ratos andando pra todo lado, o pior lugar que eu já vi na vida e eu tenho experiência pra falar. Tava chegando na primeira cela quando ouvi passos, então eu me escondi embaixo da escada e consegui sair sem me verem, pelo menos eu achei, então ouvi os tiros e alguém correndo, comecei a correr também, foi aí que atiraram em mim, eu consegui sair da boate e ir pra rua, lá eu torci para eles não quererem me matar em público. Foi aí que a ambulância e o senhor chegaram.
Tomas ficou calado. Estava tentando raciocinar, era muita informação.
- Vou deixar dois dos meus homens de confiança aqui, quando você tiver alta terá proteção.
- Eu já estou morto cara. Sou um cara morto. E nem consegui salvar as garotas.
- Você não conseguiu. Mas, vai fazer isso acontecer. Eu garanto. Doc, podemos conversar em outro lugar?
Melissa demorou um pouco para voltar a si. Sua mente estava dando milhares de voltas.
- Podemos ir para a minha sala.
Já em sua sala, ela desabou na cadeira.
- Como você pode estar tão calmo com isso?
- Essa é minha realidade doc. É igual as doenças incuráveis e mortes pra você.
- Essas coisas não são normais pra mim.
- Mas, você é obrigada a conviver com elas e não pode ser desesperar toda vez que perder um paciente. Do contrário teria escolhido outra profissão.
- O que você queria falar comigo?
- Eu preciso que você me ajude a proteger o Dionizio. Ele é testemunha de um esquema que eu nem faço idéia do tamanho, preciso que ele seja trocado de leito sem que ninguém saiba. Vou deixar uns polícias no quarto antigo, pra disfarçar e deixar outros a paisana no novo.
- Eu ajudo sim. Quero ajudar no que puder. Inclusive quando as garotas forem resgatadas, elas vão precisar de todo cuidado possível.
-Ok. Vou providenciar tudo e volto mais tarde.
Quando ele saiu de sua sala, ela percebeu que apesar da aparência de mal e péssima educação, ele até que não era tão mal. Ficou muito feliz em poder ajudar de alguma forma. Quem diria.

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