A loba e a morte

Capítulo XIX

Katherine on

Durante cada dia de minha vida eu lembrei. Lembrei seus nomes, seus rostos, ouvi seus gritos e vozes e senti o cheiro de sangue e calor chamas.

Sonhava com isso a noite e não conseguia esquecer durante o dia. Era inevitável, doloroso e complicado. Sei bem o que fiz, sei bem que foi errado e me arrependo dos danos que causei a cada pessoa a minha volta.

Mas não podia parar, não conseguia e isso me consumia cada vez mais e mais. As lembranças, os gritos, as almas.

Eu ouvia tudo em minha cabeça, sentia sentimentos que não me pertenciam, minha pele captava toques quando pessoas não estavam perto. Eram como fantasmas a minha volta que insistiam em se manifestar

Sinto os dedos de Nicholas se entrelaçando aos meus em um sinal claro de apoio e suporte.

-Se não quiser reviver isso, viramos de costas e tampamos os ouvidos-afirma me encarando com leveza- mas faremos isso juntos ok?

Encaro o ambiente a minha volta soltando a respiração que nem sabia que prendia. Aperto a mão do mesmo antes de erguer a cabeça e encarar a figura a minha frente.

Posso ter centenas de anos nas costas e muita coragem pra enfrentar tudo a minha frente. Mas até então, durante 300 anos me acostumei a fugir ou a me render a situações apenas para camuflar e passar despercebida. Nicholas me mostrou que para atingir o certo a luta é necessária e não tem nada de errado nisso. Devemos enfrentar situações e não nos entregar a elas.

-Eu tinha 200 anos-começo com aperto no peito- estava incontrolável e não aguentava mais. Tudo aquilo que havia feito, as mortes, o caos, tudo... tudo aquilo me assombrava e não conseguia mais dormir ou comer. Eu havia matado milhares Nicholas, verdadeiros massacres. Destruí famílias, vilas, histórias. Me tornei o monstro que eles diziam que eu era e sentia o peso disso em cada célula do meu corpo. Estava sozinha, com fantasmas me perseguindo, sem comer há semanas e não lembrava qual tinha sido a última vez que dormi.

Respiro fundo antes de encarar a figura a nossa frente que agora levantou a cabeça.

Eu tinha os lábios brancos, rachados e secos devido a falta de água. Bochechas com marcas profundas devido a falta de alimento, olheiras imensas, pretas e fundas e o pior de tudo, olhos sem vida. Apatia, inexpressão

-Foi o dia em que desisti-digo em tom baixo- pela primeira vez em toda minha vida eu desisti. Abracei a covarde que era e desisti. Depois de lutas e lutas, guerras e guerras, eu finalmente desisti Nicholas... simplesmente era demais pra mim tudo isso

A mulher coloca as mãos sobre a cabeça e solta um grito que arranha a garganta

-Parem de falar! Parem de falar na minha cabeça!-grita enquanto balançava seu corpo para se desvencilhar de algo invisível em um ato completamente desesperado e alucinógeno
-Kate...-começa Nicholas mas eu o interrompo
-É agora-digo em um sussurro já sabendo o que estaria por vir

A figura a minha frente grita mais alto ainda antes de envolver sua mão com uma aura preta. Ela encara a mesma antes de fazer uma súplica em voz baixa. Por fim, a mulher usa sua aura densa e obscura para ferir seu pescoço mas nada acontece

-Não! Não!-grita tentando ao máximo se machucar de algum jeito em golpes aleatórios por todo o corpo. Quando a aura não foi o suficiente para feri-la ela olha em volta à procura de algo- Não!-exclama se debatendo contra o nada e a chorar compulsivamente antes de cair no chão sem forças

A Katherine do passado se põem no chão em posição fetal, abraça os joelhos e chora alto, soluçando, gritando, se debatendo e em sofrimento evidente e vívido.

Era palpável a maneira como sofria. Seu corpo deitado abraçado contra si mesma enquanto murmurava coisas inaudíveis e chorava compulsivamente e de maneira incessante. Uma verdadeira cena melancólica e digna de pena

-Por que...-murmura baixinho- por que eu não tenho o mesmo destino que eles? Lua... por favor, me deixa, por favor me deixa ir.-suplica sem forças com voz arrastada em choro e sofrimento

Olho para baixo sentindo o peso dessa lembrança antes de encarar o rosto de Nicholas. Uma lágrima escorria pela sua bochecha e seu olhar estava perdido na cena a sua frente.

-N-nicholas-o chamo com medo do que estaria
por vir

O homem ao meu lado abaixa a cabeça e fecha os olhos como se entrasse em contato com algo que não conseguia ver.

Nunca ninguém havia sequer tido um diálogo inteiro comigo e agora Nicholas sabia das partes mais importantes da minha vida. Era assustador

-Eu sinto muito Kate-sussurra com peso na voz- sinto mesmo

Eu também sentia. Sentia muito a cada dia de minha vida. Queria ter nascido humana ou ao menos ter morrido anos antes de me tornar a aberração que sou.

-Você não se conhece

Uma voz suave e leve soa em minha cabeça fazendo uma interrogação aparecer em minha mente e levar em embora o foco que tinha sobre a cena a minha frente.

-Você ouviu isso?-indago olhando em volta mas Nicholas nega confuso ainda sentindo o peso daquilo que vira
-Ouviu o que?-pergunta distante
-Tem mais alguém aqui-digo atiçando meus sentidos e focando no que ouvira
-O que? Katherine, estamos dentro da sua cabeça! É literalmente impossível
-Não é um inimigo-afirmo andando em direção a floresta deixando minha intuição me levar
-O que?-pergunta confuso- como tem tanta certeza?
-Por que se fosse já estaria morto-digo dando de ombros enquanto solto um leve riso pela ingenuidade do mesmo

-Você não se conhece

A voz soa de novo e eu solto o ar que prendia. Eu conhecia essa voz... ela era estranhamente familiar

-Fique aqui-digo encarando o mesmo
-O que?! Katherine o que infernos está havendo?
-Só tem uma explicação lógica para tudo isso...-digo como se algo se ascendesse em minha mente- A voz que estou ouvindo é minha. Esse é o motivo de você não estar ouvindo e isso explica como alguém conseguiu se manifestar aqui. A única pessoa capaz de entrar em minha mente desta maneira sou eu mesma.
-E o que você vai fazer?-pergunta preocupado
-Nick-começo indo em sua direção com um bom sentimento no peito- eu finalmente consegui acessar uma parte de minhas memórias e de meus poderes quando te encontrei. Minha capacidade de compartilhar a dor multiplicou e pôde ser usada ao meu favor por algum motivo, eu consegui ver as memórias das pessoas mortas próximas a mim sem querer me matar, o que foi um avanço-digo em tom brincalhão a última parte o fazendo revirar os olhos- lembra quando aquele vampiro me atacou na floresta? Ele disse que eu sairia do controle de novo. Você lembra o que disse?
-Que você está mais forte
-Sim, mas sabe por quê?
-Porque você é foda?-indaga confuso
-Também-digo concordando com a constatação óbvia- quer dizer, não!-corrijo-me- porque eu não estou mais sozinha inferno! Eu tenho uma barreira e agora fico segura... eu... eu só sei que não vou mais matar ninguém e nem feri-los porque você vai protegê-los de mim mesma
-Eu não preciso protege-los de você-fala como se fosse óbvio- eu só preciso tirar da sua cabeça que você é um monstro. Afinal, o que você é Katherine?
-É isso que eu vou descobrir de uma vez por todas