Aquarela

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Nenhuma parte de mim pode acreditar

que agora não será tudo diferente

porque agora eu alcancei, finalmente,

o nostálgico nirvana de estar morto.


Eu estive pintando meus malditos quadros

para que enfeitassem todo o meu quarto

de primorosas paisagens surrealistas,

e então afastassem todos os fantasmas

que sussurraram na minha mente algum dia,

que negassem o gume injusto da vida

que perfurou meu poético coração

e que mostrassem a beleza da magia.

Mas foi em uma das vezes que eu morri

que a cor mórbida do estúpido silêncio,

com todas tonalidades de minha mágoa,

dançou num espaço em branco uma aquarela:

essa paisagem pintada com sangue e água.

Desbotou todo o meu corpo e minh'alma

em uma triste matriz de desesperança

que derreteu feito gota de mar o brilho

que adormecia lá dentro dos meus olhos.


O mundo que vi, curado dessa cegueira,

não tinha cores nem beleza da arte.

Era só um esboço de traços tortos

de coisas e de pessoas desfiguradas.


E com os dedos tortos, roxos e inchados

ensinei meu amor a pintar um poema:

não há mais os encantadores arco-íris,

nem há ouro em lugar algum desse mundo,

as lindas cores não passam de ilusões

da hipnose de um romantismo vazio

que plantou em mim aquela flor da paixão,

do fruto venenoso e do caule-sangue,

do jardim do éden e dos contos de fadas;

E Ele plantou em mim a sua semente

e germinou uma árvore quase morta;

Ele disse que juntos nós dois floresceríamos,

que como rosas nutriríamos de amor,

como girassóis ao Céu agradeceríamos...


Mas como flores morremos à luz do Sol.

É o que as flores fazem de melhor: morrem.


Nós não florescemos, e nós não somos flores

e não devíamos querer ser nada além

do que podemos ser, que nascemos pra ser,

pois é uma tortura buscar fora de nós

o que não sabemos cultivar nem por dentro.

E talvez eu não tenha cultivado nada

enquanto ocupava-me sonhando em amar.

E às vezes eu me mantenho em pé somente

buscando o nostálgico gosto desse sonho

no pó-de-flores em cinzas dentro de mim.


Desejo profundamente que o tempo mate

o que sobrou de mim (e ainda me devora)

Que misericordiosamente me salve

do que inevitavelmente planto agora.

O Mundo dos SuicidasOnde histórias criam vida. Descubra agora