Eu as chamei.

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Michelangelo não sabia exatamente se ia morrer de ansiedade ou de puro êxtase. Tinha fechado e aberto os olhos várias vezes, beliscado o próprio braço e por vezes até batido no próprio rosto mas nada funcionava e cada vez a realidade afundava em seu peito: estava acordado. Estava acordado. Acordado. Nada daquilo tinha sido um lindo sonho e era realidade material o fato de que tinha encontrado outras mutantes. Não apenas outras mutantes (e essa era a parte que fazia tudo parecer inventado) mas outras tartarugas mutantes! Estava tão perplexo como encantado e ficou tão imerso no seu próprio encantamento que, pela primeira vez, permitiu que o silêncio reinasse entre seus irmãos.

Em outro contexto Donnatelo teria estranhado o silêncio do irmão mais novo, mas sabia que aquela era uma situação excepcional. Tentava inutilmente fazer de cabeça os cálculos de probabilidade levando em conta todas as coincidências que tinha presenciado naquela noite e ao mesmo tempo fazia um plano mental para impedir que aquelas terríveis mulheres mutantes levassem April embora (ou pior, corrempessem seu espírito e fizessem ela decidir por si mesma que queria viver sozinha), levando por água abaixo toda e qualquer mísera chance que ainda tinha de conquistar a mulher que amava. Sua cabeça estava tão cheia de pensamentos, tentava fazer tantos raciocínios ao mesmo tempo e criava tantas conspirações sobre a própria existência daquele outro time que mais tarde teria que tomar duas poderosas pílulas contra enxaqueca.

Foi Raphael que rompeu o silêncio: "Mas que merda é essa"

O silêncio permaneceu, ninguém tinha a resposta. No banco de trás da van que usavam para voltar pra casa, encolhida entre a porta e Leonardo, April tinha a cabeça reclinada sobre o próprio ombro, fazia um esforço gigante para não chorar. Ficava revivendo toda a situação em um perpétuo looping de memória e se perguntava em qual momento ela tinha errado para permitir uma derrota tão humilhante. Seria quando escorregou ao desviar do ataque daquela que tinha tranças? Ou talvez quando quase tropeçou em cima dos irmãos enquanto tentava acertar a outra de cabelos longos? Não sabia. Mas sabia que tinha tido a oportunidade de ajudar o time que tanto valorizava e tinha falhado. Falhado miseravelmente. Ficava pensando na alegria que tinha sentido ao receber o convite de verificar a movimentação suspeita na zona Sul da cidade, em como se sentiu animada e revigorada ao perceber que iam sair todos juntos em uma nova missão e em como sentiu seu estômago afundar ao perceber a visão daquelas tartarugas mutantes, no outro lado do prédio, paradas elegantemente em posição de ataque e em como achou que estivesse em um sonho maluco quando percebeu que elas eram como os meninos com quem havia crescido, só que mulheres. Naquela hora, pensou que a vida era, de fato, mais estranha que a ficção.

"Eu as chamei." Ela disse, por fim, porque sabia que era verdade.

Seus irmãos a olharam como quem escuta um bode miar. Ela retornou o olhar, pensando em tudo que tinham vivido, em como amava aquela família e em como desejava nunca ter feito, ela mesma, o gesto que mudaria a vida de todos para sempre.

"Mestre Splinter me deixou um presente. Um presente de aniversário de 18 anos..." Eles já haviam chegado no esconderijo, ela correu para dentro e voltou carregando um enorme livro, tão velho quando um livro pode ser, escrito em ideogramas minúsculos e empoeirados "demorei muito para entender o que era e do que se tratava. Ele deixou junto com esse bilhete." E levantou um pedaço de papel amarelo, escrito com a caligrafia torta de Splinter, se podia ler:

"Para minha única e amada filha.
Uma chance de conseguir a grandeza que nunca pude te proporcionar."

"É uma espécie de dicionário da arte Kunoichi. Um manual, pode se dizer. Tudo que eu poderia querer saber sobre quem eu sou e quem posso me tornar está escrito aqui." Ela começou a passar as páginas. Leonardo espirrou com a poeira. "Mas eu... fui impaciente. Não queria ter que esperar, me pareceu tão contraproducente começar um novo treinamento só com um livro de guia... então eu achei... Isso!" Ela abriu o livro na última página, escrito à lápis na contracapa dura estava escrito:

"Elas vem quando você precisar,
uma ajuda que só a lua pode dar.
Para chama-las, cante!"

Logo abaixo, um verso escrito em japonês descrevia as palavras a serem ditas e o ritmo da melodia. April chorava.

"Não quero parecer ingrata. Nunca, nem em mil anos gostaria que vocês achassem que não valorizo o treinamento que nosso pai nos deu... Eu só... Queria ser ensinada por alguém que fosse como eu."

O silêncio permaneceu. Se a cabeça de Donnatello fosse um processador, estaria queimado. Olhava para April com uma mistura genuína de pena e confusão. Ela estava tão suja e machucada da luta que tinham tido que ele ficou pensando se não devia sugerir que todos se recolhessem em seus quartos por um tempo até que todo aquele caos parecesse mais palatável, mas sabia que isso não ia acontecer.
Leonardo se aproximou da única irmã que tinha como quem tenta se aproximar de um tigre machucado, sentou -se ao lado dela no sofá que tinham e perguntou, com um suspiro:"April... O QUE são elas?"

"Filhas da Lua. As quatro guerreiras impecáveis, portadoras de toda sabedoria e memoria de luta."

"HUH????" A voz de Mikey estava aguda e rouca, estranhamente parecida com a voz que tinha tido na puberdade.

"Elas vieram me ensinar."

Um conto de Flores e EspadasOnde histórias criam vida. Descubra agora