Eu tive uma infância normal paulistana: sem diálogo, trancada em casa assistindo TV nas horas vagas.
Eu passava minhas manhãs aguardando a corrida de cavalinhos do Bozo. Minha mãe ligava compulsivamente todos os dias para eu falar com aquele palhaço hiperativo. Depois de alguns meses ela conseguiu. Passou meus dados para a mulher do SBT e depois o telefone para mim. Quando eu ouvi o Bozo falando "Oi Simone" primeiro no telefone e depois na TV, eu travei. Era pressão demais falar com o Bozo. Então eu decidi desligar o telefone, fato que despertou uma ira profunda em minha progenitora que gritava repetidamente com as mãos na cabeça: "VOCÊ DESLIGOU O TELEFONE NA CARA DO BOZO!!!!".
Acho que minha mãe era mais fã do Bozo do que eu. Depois disso ela foi embora e nunca mais voltou.
Meu pai já era mais fã de carros do que de mim. Ele era mecânico e tinha um estacionamento, então sempre tinha um carro diferente lá. Todas as fotos que eu tenho da minha infância tem algum veículo no meio. Na época era muito caro revelar fotos, então meu pai aproveitava para tirar minhas fotos com os carros para economizar. Tem foto minha aos 6 meses numa cadeirinha de bebê colocada em cima de uma Brasília 1976 na cor marrom Savana, com todo o cuidado e segurança para não arranhar a pintura do capô. No banco de motorista de uma carreta aos 8 meses. E chorando em cima de uma moto aos 2 anos de idade.
Na minha foto de formatura do pré eu apareço no cantinho descontente ao lado de um fusca azul que ocupou a maior parte da foto. Sou muito grata por essa foto, tenho ela na carteira e toda vez que sinto vontade de agredir alguém, falo que vou mostrar uma foto minha criança e quando a pessoa vê eu soco o braço dela enquanto grito FUSCA AZUL. E por mais que o agredido queira revidar ele sabe que se bater depois apanha em dobro! Culpa das leis universais não escritas passadas verbalmente ou agressivamente por gerações. Acredito que essa tenha sido a inspiração do filme "O Clube da Luta". Todo mundo pode socar geral e ninguém chama a polícia. Violência gratuita aceita pela sociedade e o mais importante: respeitada.
Depois que minha mãe foi embora meu pai não tinha mais ninguém para ajudar no estacionamento, então me ensinou a dirigir com 5 anos para eu manobrar os carros do estacionamento. Aos 10 eu já manobrava treminhão de ré sem precisar de ninguém pra me guiar. Como meu pai não deixava eu mexer nos espelhos dos carros eu nunca usei espelho. Até hoje acho que espelho em carro não serve pra nada.
O problema é que meu pai nunca me deixava fazer nada divertido, sempre que o Rio Tietê transbordava e entrava água no estacionamento ele não me deixava nadar que nem as crianças que eu via na TV. Ele queria que eu fosse mecânica como ele e eu sempre quis vender artesanato na praia para poder nadar todos os dias. Como eu já estava acostumada com ferramentas, eu fazia pingentes e brincos de arame no formato de folha de palmeira. Meu pai nunca apoiou minha arte. Mas sempre contou comigo para trocar as peças de carros estacionados por peças velhas para depois arrumar o veículo com as peças do próprio carro e cobrar por isso como se fossem peças novas. Não é à toa que mecânico tem fama de picareta.
Aos 18 anos, decidi pegar minhas coisas e ir tentar a vida no Rio de Janeiro. Era isso que todo mundo fazia nas novelas. No estacionamento do meu pai tinha uma Caravan ambulância ano 88 que o Seu Gerônimo tinha deixado lá, como ele não pagava meu pai não deixava ele tirar o carro. Depois de ir algumas vezes o Seu Gerônimo desistiu ou esqueceu que a ambulância estava lá, ele já era muito idoso. A ambulância estava lá há dois anos sem ninguém falar nada. O fusca azul também estava lá. Por um minuto exitei. Propagar a violência só dirigindo pelas ruas ou poder andar na velocidade que quiser sem ser multada? Foi uma escolha difícil, mas decidi fugir na ambulância porque não tinha carteira de motorista e nenhum guarda manda ambulância parar. É só ligar a sirene que todo mundo acha que tem alguém morrendo.
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Filmes Para Assistir Enquanto Dirige
FanficContinuação do livro "79 filmes para assistir enquanto dirige" Versão da integrante nunca mostrada: Simone. Co-escrito por Ju Moraes e Jaq Oliveira