Já caída ao chão, Julia fechou seus olhos com todas as suas forças, tentando não acreditar no que estava lhe ocorrendo. Abriu suas pálpebras na esperança de que seu pesadelo tivesse se dissipado, mas não obteve sucesso e o desespero tomou conta de todo o seu íntimo.
A bailarina aos berros, foi amparada pelo namorado, enquanto todos os espectadores do teatro se contiveram em silêncio. A música se cessou e as outras companheiras de turma imediatamente correram para socorrer a colega. Em questões de segundos gerou-se um alvoroço, toda a platéia estava perplexa. Fernando, segurando o rosto de Júlia com as duas mãos, olhou fixamente no rosto da jovem e implorou por respostas.
- JÚLIA! O que aconteceu, meu amor? - Os mesmos olhos castanhos que outrora foram a razão da paixão de Fernando, agora estavam tomados por um branco acinzentado.
- Eu não consigo enxergar, Fernando. Me ajuda! Me tira daqui, amor. - Júlia tateou o corpo do namorado e tentou esconder seu rosto, tomado por lágrimas, no peito nu de Fernando.
Tomando-a em seus braços, o moreno carregou o corpo de Júlia até os camarins e se direcionou a ambulância. O casal de namorados, seguiu para o hospital mais próximo junto com os pais do rapaz. Enquanto isso no teatro, a professora Bárbara acalmou os ânimos, se despediu do casal suplicando por notícias e habilmente reorganizou o último ato do espetáculo, substituindo o protagonismo de Júlia, por Cecília.
- Meu bem, tu és a única que sabe a coreografia inteira. Eu preciso que tu termines o último ato, Cecília.
- Mas Bárbara eu... Eu não tô preparada...
- O Governador está sentado no Camarote Principal. Eu não quero saber de moleza agora, esse era o momento que tu estavas esperando, então aproveite essa oportunidade. Eu sei que tu consegues, pequerrucha.
Obviamente, essa motivação de Bárbara, se dava mais para aliviar sua própria pele, do que por realmente acreditar no potencial da aluna.
Cecília conseguiu reunir todas as suas forças, para vencer as barreiras de sua ansiedade. Finalizou impecavelmente a coreografia do último ato, surpreendendo todo o público, chamando a atenção da crítica.
Enquanto isso, no hospital, os médicos de plantão não souberam concluir um diagnóstico preciso sobre a cegueira repentina de Júlia. Era certo que não se tinha vestígios de infecção, o quadro clínico era estável e mesmo os exames neurológicos não apontaram nenhuma alteração.
- Fernando, agora que ela está descansando, nós precisamos conversar. - Mesmo mantendo o tom de voz sereno, o rapaz notará rapidamente o intuito das palavras de sua mãe. - Veja bem, meu filho... Eu nunca concordei com esse relacionamento... Essa garota mora sozinha nessa cidade, os pais nem se preocupam com ela. Ela vive farreando, não se dedica a nada e agora que está assim... Não terá mais chance alguma na carreira de bailarina!
Fernando encarava a mãe, incrédulo. Resolveu por não mais se calar. Não era novidade a desavença entre sua matriarca e sua amada, mas questionar o relacionamento dos dois nesse momento de fragilidade era inadmissível em sua mente.
- Mãezinha, não é novidade a sua desaprovação do meu namoro... Mas vir me pedir pra deixar a Júlia, nessa situação... Égua, não... Já deu pra mim!
A mais velha ainda relutante em seu posicionamento, procurou por reformular sua colocação. O que gerou ainda mais tensão entre mãe e filho.
- Meu amor... Tu és herdeiro da nossa construtora, um dia todo o nosso império, será teu. Eu tenho pena dessa moça... Ela é uma pobre coitada, com pais relapsos, que mesmo sendo bailarina, falta muito o que aprender sobre responsabilidades... Eu não posso deixar que o futuro da nossa empresa um dia possa cair nas mãos de uma esbanjadora.
- Eu acho que já tenho idade o suficiente para fazer minhas próprias escolhas, mãe. Eu não vou abandonar a Júlia.
A mulher olhou com total desaprovação para o filho e deu sua última cartada.
- Tu tens um mês para terminar esse namoro. Ouviu bem, Fernando? Se tu quiseres mesmo insistir nessa loucura, nós vamos tirar tudo o que tens e tu sairás de casa sem nem ao menos o dinheiro que tiveres na carteira. Tu serás deserdado e terás que se casar com essa rameira. Queres mesmo passar o resto da vida dançando ballet e cuidando de uma esposa cega?
As palavras da mãe foram como um tiro de rojão em seu peito. Parando para refletir, Fernando chegou a conclusão de que não existia nada no mundo que ele amasse mais, do que a vida confortável que levava por meio do patrocínio dos pais. Ele era jovem e não se via abrindo mão de toda a sua estabilidade em prol de um amor de juventude.
Júlia recebeu alta após alguns dias de internação, mesmo sem um diagnóstico fechado. Como seus pais moravam no exterior, a bela moça morava com uma tutora, que cuidava da organização da casa e fazia companhia desde os seus 13 anos.
Mas a vida da jovem ainda era solitária. Tentando vencer seu vazio emocional, Júlia se dedicava a dança, ao namorado e a festas nos fins de semana, regadas a muito álcool.
Com as novas adaptações no estilo de vida, a moça começou a notar o distanciamento do namorado. A cada dia, o abismo entre o casal se tornava ainda maior. Até que um dia, numa manhã de domingo, Fernando apareceu no apartamento no bairro do Marco, obstinado a finalizar a relação.
- Tu estás me falando que queres "encerrar" o nosso namoro? Tu achas que o que temos é igual a um contrato de obra que tu podes ENCERRAR, Fernando?
- Júlia... Eu não consigo mais, nós não somos mais um casal... É difícil pra mim admitir isso, mas não tá rolando.
- Ah é difícil pra você? TU ESTÁS FICANDO LOUCO, FERNANDO? EU TÔ CEGA!!! E o pior de tudo é que eu não consigo nem olhar nessa sua cara de merda uma última vez. O que vai rolar aqui é você, pela escada abaixo! Saia da minha frente, tu me faças o favor de nunca mais me procurar, porque se eu conseguir te pegar eu juro que te jogo da sacada desse apartamento.
Júlia poderia estar cega, mas seus gritos histéricos ainda poderiam ser escutados por toda a cidade, do bairro do Reduto até o Souza. Mais indignada do que torcida organizada de um RE x PA.
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CONTATO FÍSICO (Conto)
Kısa HikayeJúlia é a principal bailarina da Companhia de Teatro e Dança da Escola de Artes de Belém do Pará. Apesar de ser fútil e egocêntrica, ninguém pode negar o empenho e talento que a jovem apresenta para a dança. Prestes a estrear o espetáculo Rios Turv...