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O céu estava sem nuvens e a luz do sol era pálida. Noah sentia a areia fofa e quente sob seus pés. À sua frente, um vasto oceano negro espumava furioso, rebentando em ondas colossais. Ele viu o mar em tempestade e o céu pacífico - a mais verdadeira ironia da mãe natureza, nua e crua.
Apesar de o tom apocalíptico do momento, sua atenção foi pertubada pela criança de cabelos negros e túnica cor de mel que dormia ao relento.
- O que estou fazendo aqui? Este lugar não é estranho - pensou. Ele se dobrou sobre a criança para acordá-la.
- Deixe ele dormir - escutou uma voz suave dizer. - Ainda não é o momento do despertar, querido. Apenas em breve.
- O quê? - respondeu, virando-se, mas não encontrou ninguém.
Voltou a olhar para a criança, mas um barulho grave e urgente o despertou.

O despertador piscava leds vermelhos, informando as horas: 7h45.

A mão de Noah procurou pelo despertador na mesa ao lado de sua cama. No caminho ela esbarrou em uma garrafa de suco e em um sanduíche pela metade, jogando-os ao chão antes de alcançar o botão de desligar.
O dia começou tão normal quanto o dia anterior e o anteontem e o final de semana que passou voando - e não que isso lhe fizesse alguma grande diferença - mas, especificamente naquele dia, Noah tinha uma entrevista de emprego às dez horas no centro da cidade.
A partir dali ele tinha que cronometrar cada minuto para não se atrasar. Por isso, ele pulou da cama com todos os seus pequenos rituais - como coçar os olhos três vezes -, e correu para o banheiro.
Viu-se no espelho e fez o sinal da cruz. A barba por fazer e com olheiras; além de uma erupção no centro da testa que indicava o nascimento de uma futura espinha. Um banho quente e barbeador eram as melhores opções para o momento, a espinha ficou para depois.

- Droga! Eu não deveria ter ido dormir tão tarde. Acho que não vou conseguir chegar a tempo - pensou, enrolando a toalha.
Mary aproveitou que a porta do quarto de Noah estava entreaberta e o invadiu. - Vou precisar do computador, maninho. Ok? Até o final do dia eu devolvo.
Do banheiro ele respondeu: - Sem links e programas maliciosos dessa vez, Mary. Da última vez que você usou, foi difícil tirar aquele trojan que colocava a foto do Nicolas Cage como fundo de tela.
- Tá bom, maninho - respondeu, revirando os olhos. Antes de sair, Mary lembrou de outra coisa. - A Jess mandou uma mensagem pra mim ontem à noite. Ela disse que vem aqui pegar uma camisola... eu nem acredito que vocês terminaram.
- Mary, se você já pegou o que queria, pode sair - retrucou Noah, empurrando Mary em direção à porta.
- Você é chato demais, maninho. Não tenha vergonha de falar dos seus problemas com a sua irmãzinha - dizia Mary, rindo.
- Sai, Mary, senão eu me atraso.

Noah passava a loução pós-barba. Os cortes feitos pelo barbeador ardiam, mas não tanto quanto pensar na ex-namorada.
- Você não tem futuro... - lembrou, entrando naqueles loops de memórias tristes de pós-namoro. Por outro lado, apesar de terminar com a namorada, ele recebeu a oportunidade de trabalhar na melhor agência de publicidade da cidade. - Sorte no jogo, azar no amor - o pensamento foi como um raio de sol depois da tempestade.
Ele se encarava no espelho, os cabelos bem penteados, no rosto alguns pontos de sangue; a roupa, um terno slim azul-marinho comprado especialmente para a entrevista - coçou os olhos -, e julgou-se bem vestido. - Agora é com você, cara! - disse, como toque final.

Desceu para tomar café, sua mãe terminava de preparar ovos e bacon. O som e o cheiro de fritura fez sua boca salivar.
- Bom dia, querido. Preparado? - questionou Aimee, virando uma fatia de bacon na frigideira.
- Um pouco, mãe. Sabe como é, né? Estou um pouco nervoso.
- Filho, eu mais do que todo mundo, acredito em você - enfatizou. - Você é muito competente, bonito e inteligente, além de puxar o meu lado da família, porque se tivesse puxado ao seu pai...
- De novo essa conversa, mãe? - interrompeu Mary. - O papai sabe que a senhora não para de falar nele? Acho que alguém não superou a separação, hein - disse, mordiscando uma torrada.
Aimee parou a fritura e pôs seu prato à mesa. - Espero que você tenha terminado o seu dever de casa, mocinha -desconversou. - Mais uma nota baixa e você vai para o internato.
- Só se for à força, mãe - respondeu Mary, passando uma farta colher de Nutella na torrada - e continuou. - Você sabia que o Josh, irmão do Adam, disse que um dragão vermelho mora na casa velha do fim da rua?
- Não ande com esses drogados, mana. Eles não são boa companhia. Entendeu?
- Por que você é tão chato assim?
- Puxou ao pai, filha.
Noah arqueou as sombrancelhas, limpou a boca, agradeceu pela refeição e olhou para o relógio de pulso: dez para as oito. Ele sabia que a dez minutos o ônibus para o centro passaria e que de sua casa até o ponto levaria cinco minutos.
Despediu-se da mãe e da irmã com um beijo no rosto de cada uma. Voltou correndo para seu quarto para pegar uma pasta com todo seu portfólio. Deu um retoque na colônia - presente de Jess -, olhou-se no espelho e saiu.

OUTRO MUNDO - em hiato Onde histórias criam vida. Descubra agora