IV

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Há muitos pecados sobre a face Terra. A fome é o pior dele. Seja por isto, então, que os fortes comem os fracos. A campainha soou. Mary às pressas, disse - Eu atendo. - O melhor era estar longe da mesa - pensava. A campainha soou outra vez, urgente.
- Já vai! - gritou. - As pessoas não sabem mais esperar hoje em dia.
Do lado de fora, um rapaz esguio, feições finas, brincos e acompanhando de dois huskies.
À primeira impressão, Mary encarava um reflexo sombrio do irmão - mas a diferença estava no olhar, sedento de sangue.
- É aqui que mora o Noah?
Arrepiada, ela retrucou - Quem é você?
- Apenas um amigo de passagem pela cidade.
- Hum.
- Então, você poderia confirmar se ele mora aqui?
- É sim, mas no momento ele tá jantando. Você vai esperar pra falar com ele?
- Oh, não! Apenas diga que amanhã eu pego ele - seus olhos brilharam.
- Você não me disse o seu nome.
- Que falta de educação a minha. Meu nome é Bertrand.
Mary arrepiou-se. - Eu dou o seu recado.
- Muito obrigado. Até amanhã - disse Bertrand - e se foi.

- Meu irmão só tem amizade com gente estranha ultimamente - a menina pensou. - Mas esse até que era gatinho - resmungou, e voltou à mesa.
Isaac e Noah conversavam, coisa rara de se ver. Primeiro porque os dois nunca concordavam com nada; e segundo, ele não superou a separação dos pais - à época, com quinze anos e no início do ensino médio -, as brigas de Aimee e Isaac o deixavam desorganizado.
Os meses se arrastaram junto com as ameaças e os conflitos - até que dezembro chegou com uma trégua. Nas vésperas de Natal, os irmãos Cavallera acordavam cedo para montar a árvore que decorava a sala - tradição das crianças.
Entretanto, o que encontraram Aimee de olhos inchados e uma dúzia de malas - o pai estava de saída.

Isaac decidiu viver longe dos filhos e partiu sem despedidas - deixando para trás seus sentimentos paternos.
Os anos seguintes foram complicados. Noah afundou-se em mundos de fantasia na tentativa de escapar da agonia causada pela ruptura familiar.
E para vencer o abandono, ele criou laços na escola - Franz, Andy e Anne eram sua party nas masmorras e cavernas cheias de tesouros e espectros que povoavam a imaginação.
O esquisitão que dormia nas aulas, mas que tirava boas notas era queridinhos dos professores - um talento nato de análises complexas e soluções impossíveis - ninguém esperava menos do filho do gênio por trás da WeSafe.
Aos vinte e quatro anos, Isaac Cavallera já listava entre os figurões do país com uma fortuna de bilhões. O sofisticado sistema de criptografia quântica - Excalibur foi vendido para a Agência de Defesa.
Por essa época, Joseph H. Erkland era o Secretário Geral por trás do contrato com a WeSafe e das luxuosas festas em sua casa de campo.

***

Aimee E. Erkland passeava pelo jardim, recebendo os convidados do pai. A herdeira do clã Erkland cresceu entre livros e política. - Sejam bem-vindos, senhor e senhora Rosacruz. É uma honra recebê-los - ela disse, apertando as mãos com dedos alongados até os pulsos.
- Obrigada, querida - disse a senhora Rosacruz. - A cada ano você cresce mais bela e parecida com sua mãe.
- Que Deus a tenha - disse o senhor Rosacruz.
- Obrigada e fiquem à vontade - disse Aimee, chamando um empregado. - Por favor, traga duas taças de champanhe - disse, quando se aproximou. - Se me dão licença, vejo que meu pai me chama. O casal Rosacruz sorriu e se despediram.
Joseph estava ao lado de um jovem alto, de barba irregular e socialmente deslocado.
- Filha, quero que você conheça Isaac Cavallera. Ele é dono da WeSafe.
Cheia de classe, Aimee sorriu. - Seja bem-vindo, senhor Isaac.
- Só Isaac - ele respondeu. - Eu não gosto de formalidade.
- Como queira.
Joseph olhou para os dois. - Vou deixar os jovens conversando - e saiu.
Isaac bebia cerveja, em lata. - Você não se cansa disso?
- Não entendi a sua pergunta - Aimee retrucou.
- Você sabe do que eu estou falando. Sabe, de não ser você mesma.
- E o que você sabe sobre eu não ser eu mesma - respondeu, evitando parecer grosseira.
Isaac se aproximou. - Sabe o que eu sei?
- O quê?
- Isso... - e roubou um beijo.
Aimee o empurrou e devolveu o atrevimento com um tapa. A música e as conversas pararam; todos olharam para ela. - Desculpem - e correu.

OUTRO MUNDO - em hiato Onde histórias criam vida. Descubra agora