VI

15 2 0
                                    

No lugar em que a noite nunca acaba, uma cancão alegre foi tocada. Na corte do rei demônio, o nascimento de uma calamidade foi comemorada. As notas de Boritragud soaram exageradas - mesmo para diabolins e diabretes. A composição foi escrita às pressas quando a Rainha Sem Nome deu à luz ao seu primogênito.

Línguas de fogo celebram O amor do Perdido Suas mãos frias Afiadas como espada Coração Vivo Como esquecer Se até mesmo a Saudade é uma filha
Seu nome jamais será esquecido nas estrelas O drama persegue o herdeiro
Do trono caído O sangue lhe chama
Voz insana É fera do povo Um rei insosso

Ao cessar das notas, o rei brandiu sua espada; o corte foi limpo e a cabeça de Boritragud jamais voltaria a compor outro escárnio contra seu rei.

***

Os raios de sol atravessavam a folhagem das árvores, no chão o musgo cobria parcialmente as pernas feridas de Noah. Acordou de súbito e sentiu a fadiga. Olhou o redor com desesperança, sobreviveu à noite mas o dia reservava outros desafios - e o prazo para encontrar com o sujeito que levara sua família.

O rapaz levantou, deu dois passos e arqueou com a dor na perna. - Que beleza, agora eu estou mancando também - resmungou. Buscou um galho para fazer de bengala; desistiu e olhou para a mochila, pegando um pacote de biscoito recheado. O açucar do chocolate melhorou seu humor, mas o pacote acabou mais rápido do que gostaria.

- Posso continuar a me guiar pelas árvores? Não sei se vale a pena durante o dia - pensou. Lembrou do borrão que viu na noite passada. - O que era aquilo afinal? Ficou em alerta, a tensão cresceu, embrulhando o estômago. Quis botar o café para fora, mas segurou as pontas. Levantou de novo e percebeu as coisas brilhantes e redondas que se projetavam entre o musgo e as raízes - a coisa semienterrada brilhou, chamando-lhe a atenção - era um cabo adornado com uma pedra carmesim com a forma de cabeça de leão.
- Vou ficar com isso - sussurrou. Passou os dedos em volta e puxou. Segurar a espada era como levar choques na mão, Noah a balançava no ar, ensaiando golpes - cortou cipós e galhos, e com força acertou um tronco à frente.

A espada ficara presa. Tentou puxá-la, mas quanto mais força fazia, mais suas mãos escapuliam do cabo.
- Que droga! Perdi a espada. Olhou ao redor em busca de outra, mas nada lhe chamou a atenção, além de um broquel em bom estado. Teimoso, concentrou-se por alguns instantes, pôs a mão no cabo, os músculos reteseram e a puxou; sentiu a mão formigar quando a lâmina fez um arco no ar - balançou seu prêmio e apontou quando viu o slime azul que pulava na sua frente.
Encararam-se, então a criatura deu um salto bem na sua cara - Noah sentiu que estava afogando, as mãos puxavam o corpo gelatinoso do monstro, mas escapava entre os dedos.
Sem saída, o rapaz usou a boca para se defender - na primeira mordida, o slime se tremeu e Noah puxou o ar, mas a criatura voltou a se atracar no rosto do rapaz. - É tudo ou nada - pensou. Empurrou parte do slime para dentro da boca e mordeu o mais forte que pôde.

O monstro sacolejou então soltou. Noah estava roxo quando puxou o ar. - Eu consegui - disse, ofegante.
A criatura voltou, no rosto a raiva estampada. - Quem você pensa que é para me beijar daquele jeito? Fique você sabendo que eu gosto de mulher.
Não deu tempo para pensar em outra coisa senão - Você fala?! - respondeu Noah.
- É claro que eu falo. De onde você vem os slimes não falam?
O rapaz estava sem graça. - Na verdade, vocês não existem lá.
O slime empertigou-se, confuso. - Raios! Que terra amaldiçoada é esta que não tem slimes em seus campos?
Noah estampou o rosto com um sorriso amarelo. - É a terra dos humanos.
A criatura arregalou os olhos. - Humanos?! Eu nunca vi um de perto. Achei que você era um elfo das montanhas, a pele pálida parece com a deles.
- Não, eu sou apenas um humano.
- E o que você faz aqui na Floresta das Aranhas?
- Eu estou procurando a minha família. Um cara trouxe ela pra cá, sabe o que quero dizer... aqui pro Outro Mundo.
- Deve ser muito bom ter uma família. Eu não sei da minha há muito tempo - disse o slime, divagando. - E qual o nome do criminoso?
- O nome dele é Bertrand. Você conhece?
O slime pensou e pensou. - Não faço a mínima ideia. Sabe como é, faz um tempo que eu não saio dessa floresta. Falando nisso, eu acho que a gente não pode ficar aqui.
- Aqui, aqui? Ou aqui na floresta? - Noah questionou.
- Ora, mas é claro que é aqui. Você está no ninho do Ent. E ele não gosta nadinha de humanos - disse o slime, olhando os ossos pelo chão.
Noah não deu um passo sequer quando o tronco que ele acertou se levantou do chão.
- Acho que você já conhece ele, rapaz.
O Ent tinha sete metros de altura, um incontável de chifres abarrotados de penduricalhos e um corpo coberto de de pedras e musgo - mas sua pior parte era a enorme boca.
O monstro arrancou uma árvore e jogou na direção do rapaz. Noah rolou, caindo sobre crânios que espatifaram sob seus braços - o Ent gritando batia no peito como um gorila. Não lhe restando alternativa senão fugir, o rapaz levantou e correu.

OUTRO MUNDO - em hiato Onde histórias criam vida. Descubra agora