NADA COMO O SOM DO VINIL

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Segurando o LP entre as mãos, com cuidado para não sujar nem arranhar as faixas com as próprias digitais, Maurícia o depositou sobre o prato. Apesar de já ter repetido o mesmo movimento diversas vezes antes naquela noite, foi com um prazer inesgotável que levou o braço do toca discos até a faixa desejada, contando mentalmente:

- Um, dois, três...

E o pousou de forma precisa, para que o ruído da fricção da agulha no vinil se instaurasse, deliciosamente incomparável, antes que o início da quarta música do lado A de "Use Your Ilusion I" tocasse: Don't cry – Guns N roses.

Liv começou a rir, de forma inexplicável. Maurícia não perguntou nada. Apenas sentou novamente ao lado dela, fitando-a, como se deixasse claro que não tinha pressa.

A intenção de Liv não era, de forma alguma, ser misteriosa, muito menos desagradável. Tentou sufocar o riso, enquanto explicava:

- Desculpe, eu... Não pude evitar... É que essa música...

O olhar fixo de Maurícia a instigou a dizer:

- Foi com ela que perdi a minha virgindade.

Maurícia apertou os olhos, nitidamente interessada. Mas nem assim disse nada. Apenas deixou que, em seu próprio tempo, Liv completasse:

- Eu tinha dezesseis. A primeira e última vez que eu transei com um cara.

Calou-se. Fitou Maurícia, que compreendeu que se não perguntasse, Liv não falaria mais:

- Era teu namorado?

Liv assentiu com a cabeça.

- E o que foi assim tão engraçado?

A resposta foi imediata:

- Na verdade... Agora eu consigo achar graça, mas na época foi exatamente o contrário.

Fez uma breve pausa, deixou que o olhar se perdesse... Um sorriso condescendente se acomodando vagarosamente nos lábios quando, com uma nitidez inesperada, as recordações vieram, se espalharam, se estabeleceram. Não pensava naquilo há muito tempo. O bastante para que pudesse ponderar sem nenhum sofrimento:

- Fiquei pensando na irmã dele o tempo inteiro.

Maurícia deixou escapar:

- Capaz!

E perguntou, sem poder se conter:

- Ficaram juntas depois, pelo menos?

Liv riu, divertida com a curiosidade dela:

- Nunca rolou nada. Nem um beijo. Só na minha imaginação de adolescente apaixonada mesmo.

Riram juntas dessa vez. Liv prosseguiu:

- Mas serviu pra eu admitir pra mim mesma, pra ter certeza do que eu sentia realmente. Conheci minha primeira namorada logo depois.

Num impulso, Maurícia se virou e procurou até encontrar o que buscava. Tirou o LP da capa, sem deixar que Liv o identificasse. Ajoelhou, erguendo o corpo, e repetiu todo o processo ritualístico das outras vezes para fazer com que a música "Wicked Game" finalmente tocasse. Voltou a sentar de frente para Liv, antes de falar:

- Foi com essa.

Liv franziu o cenho, numa interrogação muda, fazendo com que Maurícia confirmasse:

- A minha primeira vez.

Parou subitamente. Para Maurícia, já era informação até demais. Para Liv, quase nada:

- E?

Não foi a pergunta em si, mas a nudez com que os olhos castanhos a fitaram, proporcionando a Maurícia uma confiança completamente inusitada:

CONTORNOS - Pinceladas do amor entre mulheresOnde histórias criam vida. Descubra agora