Quando Laura saiu do banho, todas as luzes do apartamento estavam apagadas. Foi o som que a chamou, de forma inexorável. Sem precisar da visão para guiá-la, seguiu a música que tocava, vinda da Jukebox - cuja luz conferia uma penumbra colorida à sala. Na frente do aparelho, com um copo de uísque na mão, Michelle movia o corpo sensualmente, de olhos fechados.
I believe in you. You know the door to my very soul. You're the light in my deepest darkest hour. You're my saviour when I fall.
Em qualquer outra ocasião, Laura colaria o corpo no dela e a acompanharia, sem hesitar. Mas não estavam vivendo uma situação normal. Aproximou-se o suficiente para perguntar num volume baixo voz:
- Onde está a Amanda?
Michelle olhou para ela com um sorriso que não deixava margem para erro:
- Foi dormir.
Puxou Laura para si e beijou-a, de forma absolutamente apaixonada. De início, Laura correspondeu integralmente, exatamente como Michelle esperava. Apenas para, logo depois, recuar, com uma preocupação exagerada:
- E se ela sair do quarto? Pra ir ao banheiro, ou tomar uma água?
Foi cortada com a mais sedutora suavidade:
- Estou beijando a minha mulher na minha sala. Nada demais. Com certeza ela já viu coisas muito mais explícitas. E com a idade que tem, fez também, claro!
Com uma rapidez assustadora, as imagens ameaçaram se formar na mente de Laura, que as afastou antes que realmente se materializassem:
- Prefiro não pensar nisso.
A primeira reação de Michelle foi rir, achando graça no repentino e inédito surto de moralismo de Laura. A segunda foi colocar o copo na mão dela e enlaçá-la pelo pescoço:
- Meu amor... Relaxa...
Fez uma pausa antes de completar:
- É ela que tem que se adaptar à nossa rotina e não o contrário.
Cause we're living in a world of fools breaking us down. When they all should let us be. We belong to you and me.
Laura livrou-se do copo, depositando-o no móvel mais próximo:
- Tem razão.
Abraçou Michelle pela cintura e encostou o rosto no dela, o contato fazendo-a deixar escapar um suspiro. Com o bom humor delicioso que lhe era peculiar, Michelle disse:
- Eu sempre tenho.
O riso que compartilharam pontuou o momento em que começaram a se mover juntas, seguindo o compasso da música.
And it's me you need to show how deep is your love. How deep is your love, how deep is your love?
Os lábios voltaram a se buscar, fazendo com que perdessem a percepção do resto do mundo. Sequer notaram que não estavam mais sozinhas na sala.
Presenciar a intimidade das duas despertou em Amanda um sentimento fortíssimo, impossível de evitar. Com uma leve pontinha de despeito e tristeza por não ter alguém com quem compartilhar um momento como aquele e, ao mesmo tempo, embevecida e excitada com a beleza sem igual da cena, não foi capaz de sair dali, queria ver, precisava olhar. Até o fim.
Foi muito mais breve do que esperava, pois quando as carícias começaram a se intensificar, Michelle sussurrou algo no ouvido de Laura, que assentiu com um aceno de cabeça antes das duas se afastarem.
Deveria ter se virado e voltado para o quarto naquele momento, enquanto Laura desligava a Jukebox e Michelle a esperava, mas não o fez. Seus pés pareciam grudados ao chão. Quando finalmente se moveu, era tarde demais, elas já a tinham visto.
Michelle não precisou falar duas vezes. Aquele "vamos para o quarto?" sussurrado no ouvido num tom muito mais de exigência do que de convite não permitia uma reação diversa da que teve: Laura concordou e desligou a Jukebox, para atendê-la o mais rápido possível.
Antes que pudesse pegá-la pela mão ouviu Michelle perguntar:
- Nós acordamos você?
Não conseguiu enxergar Amanda, apenas ouviu a voz dela no breu:
- Não, eu só levantei pra pegar água.
Algo no jeito que ela falou, ou talvez o suave tremor entre as primeiras palavras, fez Laura ter certeza de que ela já estava ali há algum tempo. Com a mão unida à de Michelle, a fez caminhar com ela enquanto informava:
- Tem um interruptor aqui, do lado da porta do seu quarto.
Acendeu, para mostrar o lugar exato, antes de completar:
- E outro na parede ao lado da porta da cozinha à esquerda.
Amanda sorriu sem conseguir disfarçar o quanto estava embaraçada:
- Obrigada.
O tom de Michelle foi quase maternal:
- Boa noite, querida.
Fez Amanda sorrir:
- Boa noite.
Laura também desejou, mas de um jeito bem diferente. Quase com formalidade:
- Boa noite.
Antes de entrar no quarto com Michelle e fechar a porta.
Trecho do livro FALSAS VERDADES de Diedra Roiz, publicado pela Editora Vira Letra
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CONTORNOS - Pinceladas do amor entre mulheres
Short StoryOne shots com protagonismo lésbico. Onze contos com protagonistas lésbicas, onze histórias independentes, onze experiências diferentes, todas sobre mulheres que amam mulheres.