EMPATIA

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O que me fazia passar os dias soluçando com o rosto enfiado no travesseiro dentro do quarto trancado e sem luz, não era o fim do relacionamento com meu namorado, como todos pensavam.

Deixava as cortinas fechadas. O céu tão brilhante e azul contrastando com meu interior insalubre doía. Chorava, porque para Pietra, era como se eu não existisse.

No fundo odiava o fato de não estudarmos no mesmo colégio. De nem à distância poder vê-la.

As aulas transcorriam sem que eu conseguisse ouvir uma palavra. O vestibular se aproximava e eu não estudava, não dormia, não comia. Minha mãe ficou preocupada. Quis conversar:

- O que aconteceu, filha?

Por mais que ela tentasse ser amiga e compreensiva, era minha mãe. Dificilmente aceitaria a verdade. Como poderia? Se nem eu mesma conseguia. Não queria que ninguém soubesse. Muito menos as pessoas que amava. Tinha medo de perdê-las, medo de que não gostassem mais de mim.

Olhei para ela com a impotência de quem sequer pode desabafar o que sente. Como? Quando era algo inconfessável. Inaceitável. Algo que eu não queria, mas seria obrigada a carregar para sempre.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Minha mãe acariciou meu rosto e desabei. Chorei em seus braços, ela me embalou como fazia quando eu era menina. Aquilo só serviu para aumentar a angustiante sensação de vergonha e repulsa que eu já sentia por mim.

A ânsia de vômito subiu sem que eu pudesse conter. Sem parar o pranto convulsivo, só tive tempo de me soltar dos braços de minha mãe antes de vomitar no chão. Meu corpo tentando encontrar algum alívio para as coisas que eu me forçava a engolir.

Meu vômito fez minha mãe ficar cismada:

- Victória, fala a verdade. Você está grávida?

Neguei mil vezes. Mas ela insistiu:

- Pode dizer. Seu pai e eu não vamos brigar com você.

Tentei argumentar:

- Não, mãe. Não posso estar grávida.

Inútil. Só me compliquei mais:

- Como você sabe? Fez algum exame de farmácia?

Fui obrigada a responder:

- Não... Mas é impossível.

Estava realmente preocupada:

- Impossível por quê? Mesmo se você for virgem... Você é?

Meu silêncio fez a ansiedade dela aumentar:

- Victória, pode falar. Você ainda é virgem? Você e o seu namorado já...? Existem outras formas de engravidar sem vocês irem até o fim...

Naquela hora minha vontade foi gritar:

- Não posso estar grávida, mãe, porque dedo não engravida!

Mas felizmente, consegui me controlar. Perante minha total ausência de palavras - falta de confiança, era como ela classificava - fui levada à ginecologista.

Minha mãe entrou comigo. Sentou do meu lado. Exatamente como da outra vez que tínhamos estado ali, logo depois da minha primeira menstruação. Ao contrário daquela, porém, a presença dela não me tranquilizou. Só serviu para aumentar a tensão que as perguntas de praxe por si só já me causariam. Fiquei olhando para o chão, enquanto respondia. Até chegar a que mais temia:

- É virgem?

Naquele momento, a ira tomou o lugar da depressão e apatia dos últimos dias. Quase gritei:

- Não sou mais criança! Será que não tenho nem o direito de entrar aqui sozinha?

Nunca havia falado com ela daquele jeito. Minha mãe era naturalmente paciente e compreensiva. Não brigava, conversava. Não me batia, me colocava de castigo. A vida inteira havia sido assim.

Magoada. O rosto, o corpo, a voz, tudo nela me dizia:

- Era só você ter me falado...

Levantou e saiu.

Não havia como correr atrás dela e pedir desculpas. Se o fizesse precisaria explicar, confessar... O indizível.

A médica continuou impassível, olhando para mim. Repetiu:

- É virgem?

Imediatamente respondi:

- Não.

Sorriu. Perguntou:

- Era isso que você não queria que sua mãe ouvisse?

- Não... Sim...

Minha confusão era explícita. Ela fez questão de dizer:

- O que você me disser não vai sair daqui. Pode ficar tranquila.

Ironicamente, foi o meu primeiro contato com o juramento Hipocrático. Mas o problema não era desconfiança, nem medo. Era não saber o que dizer. Esfreguei o rosto, suspirei exasperada. Voltei a olhar para o chão e perguntei:

- Podemos continuar?

A médica prosseguiu, após um breve silêncio:

- Usa algum método anticoncepcional?

- Não.

Parou novamente. A voz soou muito suave, maternal, quase:

- Se quiser, posso te ajudar a escolher o melhor método pra que você possa fazer sexo com segurança...

Interrompi:

- Não preciso.

Insistiu:

- Mesmo com um parceiro só...

Não continuei ouvindo. Buscando as palavras, tentando descobrir como dizer. Parecia muito difícil. Falei o mais baixo possível:

- Gosto... De garotas.

Deveria ter dito que era gay? Homossexual? Lésbica? Aquele primeiro confessar foi muito mais para mim mesma. A coisa que menos importava era a terminologia.

Incrivelmente, ela não teve a reação que na época eu jurava que teria. Não me expulsou, nem me recriminou. Apenas sorriu. Um sorriso que fez com que a sensação de fim de mundo diminuísse um pouco dentro de mim.

Trecho de O LIVRO SECRETO DAS MENTIRAS E MEDOS, primeiro livro de Diedra Roiz

Trecho de O LIVRO SECRETO DAS MENTIRAS E MEDOS, primeiro livro de Diedra Roiz

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