Capítulo 1 - A boa sociedade bonfinense

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Vasos e ramalhetes de rosas, jasmins-bogaris, açucenas, margaridas e hortênsias se espremiam nos altares laterais e entulhavam o altar-mor, cobrindo a imagem do padroeiro até os joelhos. O cheiro adocicado das ofertas interesseiras e pretensiosas de boas senhoras bonfinenses, que pleiteavam entre si o título de devota mais piedosa e cristã mais generosa, antecipava o gozo do Éden naquela pequena parcela do sertão goiano e recordava aos viventes que ali a peleja de gerações incluía até flores e ornamentos.

Àquele bálsamo suave somava-se um zumzum intermitente e teimoso que nascia no meio do povo e ia brincar lá fora, rebelde; indiferente a questionamentos de autoria e a etiqueta religiosa. Se não fosse um lugar sagrado, qualquer passante, desavisado e curioso, entraria a procura de um baile e pediria pito ao primeiro camarada, tamanha a algazarra.

Verdade é que um padre português, anos antes, tentou conter os ânimos e as bocas, inflamado pelo espírito romanizador do senhor bispo de Goiás e o próprio espírito tridentino que trazia consigo. Orador afamado, ex-reitor do seminário, camarada da elite vilaboense, a melhor porção do rebanho do Senhor, fez de tudo para persuadir aquele bando de caipiras ignorantes, como fizera questão de frisar no livro de tombo posteriormente, à vida de afabilidade, recato e piedade com a qual estava acostumado em outras freguesias. Tudo em vão. O povo interpretou errado e instaurou o caos, que foi culminado com um tiroteio na calada da noite, uma mácula na reputação do celibatário e, consequentemente, sua própria expulsão, com o rabo entre as pernas. Assim, era Bonfim.

Dona Adelaide, sempre disposta a contribuir com a paz local e os bons costumes, tão santa quanto maliciosa, deu importantes contribuições aos movimentos revoltosos, usando apenas duas de suas melhores armas: a imaginação fértil e a persuasão incisiva, tão naturais quanto seu egoísmo.

Se havia criatura mais desapegada na face da terra, desconheço. Como ninguém a amou, não fizera outra coisa em vida que não fosse cuidar da vida dos outros, com tanta presteza e solicitude que dificilmente alguém a superaria em "altruísmo" e "caridade".

Convicta de sua superioridade ajeitou-se melhor no banco - o décimo, à esquerda, onde sempre se sentava, solitária como um gambá - e abanou-se com o leque remendado por alguns pontos de linha de algodão. Puxou o fôlego e soltou-o lentamente. O peito inflou-desinflou e os seios flácidos se movimentaram. O que mais teria que fazer para manter a imagem de boa dama? Há anos deixara de crer em Deus, nos santos, mas ainda ia àquele lugar sorrir com a boca murcha para uma dúzia de pessoas também descrentes, que esboçavam uma fé fria, e submetia-se a ritos que para ela não tinham mais sentido algum. Encolheu o corpo e virou a cara, desdenhosa. Desejou que Alice, a impertinente Alice, passasse direto e não lhe atazanasse a paciência naquela calorosa tarde de maio. Não estava a fim de teatro naquele dia! Teria que fingir mais uma vez gostar daquela mosca morta só por que era neta do coronel? Conveniências... Conveniências... Por elas se sacrificava uma vida toda de autenticidade.

Alice, uma mulher miudinha, um tanto perdida – o que não era novidade – , depois de tanto vasculhar rostos, perscrutar semblantes e examinar algumas vozes, enxergou Adelaide escondida atrás do leque. Sussurrou-lhe com um cumprimento animado.

Adelaide, descoberta e vulnerável, respondeu discretamente.

Alice, sem mesuras, abriu caminho e sentou-se ao seu lado. Sorriu-lhe afetuosamente, como de costume, perguntou pela família e puxou o terço da bolsinha de tafetá para sufragar algumas almas do purgatório. Entretanto, antes que começasse, pois era rezadeira calorosa, Adelaide a interrompeu com um cutucão.

_ Espia... Alice! –  começou, apontando com o queixo duas moças. – Teodora, a sopraninho do padre Samuel... A mim nunca enganou –  e bateu a mão no peito. – Você se lembra de como o cura a olhava malicioso e ela correspondia toda trigueira? Eu fui a primeira a delatar! – endossou, ajeitando-se melhor no banco e aprumando o busto. –  Ah mim ninguém engana! Agora se finge de santa... Leva flores a Nossa Senhora! Mas o passado ninguém apaga, Alice. Ninguém apaga! 

Amor e distinçãoWhere stories live. Discover now