A fazenda São João, incrustada numa baixada do Mato Grande, distante seis léguas da cidade, Bonfim, pertencia a Joaquim Eustáquio Rodrigues de Moraes - vulgo Quincas -, pai de Manoela. Estendia seus domínios do córrego da Mumbuca até o córrego do Cortado, ultrapassando o Carapina e o Mato Grande, para descansar lá no espigão, onde o cerrado era mais ralo e as vacas pastavam durante a seca. O campo limpo e a água farturenta despertavam grande inveja nos vizinhos.
Qualquer pessoa avistava o casarão de longe, viesse do Bonfim, viesse de Campininha das Flores percorrendo a estrada salineira - principal rota na escoação de mercadorias do sudeste goiano. Muladeiros, tropeiros e boiadeiros exclamavam ao vê-lo "benza Deus, que trem bonito, sô!", "que formosura de casa", "aquela é bem feita mesmo" e paravam para tomar um gole d'água ou xícara de café, oferecer alguma mercadoria para as mulheres da casa e bisbilhotar. Protegidos pela desculpa, espiavam cada detalhe e levavam adiante o boato: no Mato Grande tem um casarão que não é pra qualquer um não.
Os mais pobres do lugar - acostumados com a presença monumental de um casarão cujo número de janelas era equivalente a idade de Cristo e o triplo da quantidade de filhos do casal - usavam-no como sinônimo de fortaleza, grandeza e riqueza. A devoção com que o contemplavam era quase religiosa. Faltavam benzer-se ao vê-lo.
O casarão era uma construção sem precedentes. Erguido pelo próprio Quincas em 1895, sustentava invicto trinta e três janelas estreitas e compridas, dezoito cômodos e um copiar farto - de fora a fora na porta da sala-, tudo selado por grossos esteios e baldrames de aroeira, firmados em grandes pedras gnaisse. O alicerce no ponto mais alto chegava a metro e meio de altura. A cumeeira, a mais aprumada e alinhada num raio de muitas léguas, não vergara um centímetro em três décadas de sol e chuva constantes.
Roseiras, cravos, monsenhores, amores-perfeitos, verbenas, jasmineiros, margaridas, hortênsias, açucenas e gerânios cresciam desregradamente ao do redor do casarão, dando-lhe feminilidade e delicadeza. O quintal, cercado por estacas de aroeira, sumia de vista. Genipapeiros, abacateiros, mangueiras, jambeiros, jabuticabeiras, goiabeiras desbravavam chão rumo ao rio, lá longe, disputando espaço. Debaixo das sombras muitos bichos ciscavam ou descansavam: pavões, perus, galinhas, garnisés, porcos, leitões, gansos e marrecos.
Naquela tardezinha fria e poeirenta, o casarão estava um rebuliço. Constança, a segunda filha do fazendeiro, havia acabado de entrar em trabalho de parto. O que era para ser uma simples visita de fim de tarde tornou-se um drama familiar. Os homens foram enxotados para o terreiro imediatamente. Uma vela acendeu-se diante do oratório. Mãos feminis levaram uma chaleira com água ao fogo e outras correram ao quintal a procura de ervas e ramos.
A matriarca, uma mulher vigorosa, mas miudinha - cujas carnes ainda teimavam em permanecer no lugar depois de onze partos - , comandava as duas filhas solteiras e os preparativos com agilidade, à espera da parteira. Embora tivesse experiência e conhecimento suficientes para "pegar" o próprio neto, recusou-se: naquela ocasião, a dó era empecilho e não benefício. Uma assistente comovida mais atrapalhava que ajudava.
Manoela, um tanto estabanada e desorientada, esforçava-se para assimilar os comandos da mãe. Na peregrinação cozinha-quarto trombou duas vezes com um portal e três com as paredes do corredor. Uma hora levou água fria para o quarto e toalhas para a cozinha. A mãe teve que acalmá-la com uma sacudida forte e pouco gentil:
- Que isso, criatura? A gente tem que ter coragem até pra morrer, m'a fia! Traz a água da chaleira! De pressa!
- Chaleira? Mas...! - e saiu correndo para a cozinha, tropeçando em Severino, o gato.
Quando retornou, a mãe tomou a chaleira de suas mãos bruscamente e jogou a água fumegante na bacia, que estava cheia de folhas.
- Assunta, que um dia chega sua hora chega. Vai aprendendo que a gente nunca sabe...
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Amor e distinção
RomanceCapa gentilmente cedida por @sargentoboebel. É a década de 1920. Constantes transformações acontecem no país, na cidade, no campo e em Manoela, uma camponesa cujos cabelos cheiram a flor de laranjeira. Rompidos três noivados, aniquilada a reputação...