Capítulo 7 - O bom filho à casa retorna

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Idalina era uma mulher devota.  Dia após dia, confiava sua casa às bênçãos do senhor São Sebastião, Senhora da Abadia e Divino Padre Eterno, reforçando, cotidianamente, os vínculos afetivos e a eterna servidão. Para agradar os céus, enfeitava o oratório com as melhores flores, mantinha as velas sempre acesas e trazia as toalhas sempre limpas. À noite, reunidos os filhos,  balbuciava rezas sem-fim e entoava benditos. Extasiava-se. "Inha mãe, reza só mais um padre-nosso e já chega". "Sossega. Vamos cantar o bendito do Divino, aquele que diz assim...." e se perdia na viagem rumo aos céus. Esperta e proveitosa dessa intimidade, barganhava e chantageava: "Espia, meu santo Antônio, lhe arranco o menino Jesus dos braços se...", "olha meu São Sebastião, na festa de janeiro não lhe dou um bezerro se..." E assim levava a vida, crente nas benesses divinas, confiante na sólida amizade que construíra com os santos no decorrer dos anos e lhe renderia privilégios imensuráveis. 

Supersticiosa, via prenúncios divinos em tudo: no piar diferente ou desregulado das galinhas, no uivo do fogo na fornalha, na visita do beija-flor, no canto agourento da coruja e do anu... Mas nesse caso específico, não obteve nenhum sinal. Houve sim a manifestação encarnada da verdade, traduzida por comadre Mafísia, em sua bondade de boa dona, caolha, cansada, encanecida, o fuminho piruetando de um canto a outro na boca murcha. 

A notícia entrou casa a dentro esbaforida, gritando "comadre!, comadre!". 

Na fornalha o fogo crepitava alto. Dentro do tacho de cobre, o doce de ovo, amarelinho e cheiroso a cravo e queijo, cozia. Fumegava em lento processo de apuração. Era o doce preferido de Quincas. Idalina sabia e queria agradá-lo. Os sufrágios digestivos eram infalíveis, sobretudo quando a birra  durava mais de três dias. Briguinha à toa fora aquela. Só brincara que caso Maria, sua cunhada, viesse ao casamento, não sobraria doce para os outros convidados, pois ela tanto comeria quanto carregaria. Mas não era verdade? 

Como as mulheres sempre tomam frente de tudo, estava ali, providenciando os rituais de reconciliação. 

Mafísia invadiu a cozinha gritando, tropeçando nas próprias pernas:

_ Comadre de Deus! Senhora da Abadia! Eu pensei que ia ter um troço...

Idalina, que conhecia bem o gênio da comadre e o exagero com que conduzia qualquer assunto, não deu crédito ao "susto" aparente. Largou o doce e deu a ela um copo d' água. Mostrando uma cadeira fez que sentasse e sentou-se em outra. A saia grande varreu o chão batido. Os pequenos pés descalços juntaram-se um por cima do outro, em sinal de espera.

_ Que destempero é esse, comadre? Parece que a senhora viu assombração, mulher de Deus! Esconjuro! 

As sobrancelhas cerradas indicavam desinteresse e tédio. Não era mulher afeita a fofocas. Era inclusive de falar pouco, meio de arranco, jogando palavras quaisquer na conversa, como criança jogando pedrinhas no riacho. Bem fazia quem pouco falava, pois a língua é bacalhau da bunda. Quem conversa demais dá bom dia a cavalo. 

_ Ô, minha comadre, a senhora me ajudou tanto com minha Mariquinha que nem querendo, numa vida toda, eu dou conta de pagar a senhora. Senhora sabe que sou grata pelos conselhos que deu pra ela e achei merecida aquela sentada boa que ela levou. Menina consertou. Virou outra, comadre. 

Idalina puxou a barra da saia para tirar os carrapichos que apanhara no decorrer do dia. 

_ Comadre, não fiz mais que minha obrigação. Já falei que a senhora não tem que colocar isso em conta. Mariquinha é igual uma filha pra mim. Mas eu acho que a senhora  não veio nessa correria toda pra me falar dela, né? Larga de rodear toco, comadre, que eu não gosto. Vai direto ao ponto e deixa disso. 

A velha cruzou as pernas e amiudou o corpo.  As mãozinhas miúdas e engenhadas ajeitaram o vestidinho de chita. As vistas se firmaram numa galinha carijó lá fora. Precisava criar coragem. Como dizer aquilo? 

Amor e distinçãoWhere stories live. Discover now