Capítulo 5 - O ultimato

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O sol suspendia-se acima da serra naquele último domingo, frio e úmido, de maio. No casarão de Quincas, o movimento de pessoas era grande. Compadres e amigos gambiravam, proseavam na sala, pitando um cigarrinho de palha, enquanto as mulheres atualizavam as informações da semana na cozinha: fulana de tal está com estupor, beltrana fugiu com filho de siclano, soube que a tal anda enrabichada com o dito-cujo... 

Brás, um rapagão encorpado, mineiro arretado, de fogo nas ventas e sangue quente, atracou no pátio de chão batido, montado em Dico, um cavalo mangalarga de marcha trocada. O queixo fendido, o maxilar robusto, o nariz fino, o cabelo preto, escorridinho e bem penteado, reforçavam a imponência de semi-deus, hercúleo. As pernas abertas, o peito estufado e a garrucha 380 creditavam a valentia de quem não tinha tato na língua nem medo de macho. Foi entrando casa à dentro, pedindo licença, cumprimentando um e outro modestamente, sem galanteios e risos. Quincas mostrou-lhe um tamborete de três pés no canto da sala e fez que sentasse. Sentou, obediente. Tirou o chapéu Cury da cabeça e o colocou no joelho. Secou a testa com um lenço e analisou os rostos ao redor. Bando de caipiras fedidos e ignorantes! Há tempos esforçava-se para engoli-los, mas não desciam. Eram intragáveis. A ignorância, a bestialidade e a pobreza ainda lhe causavam nojo e pena. 

Por que estava se arriscando mesmo a casar com Manoela e se misturar com eles? Já havia passado tantos meses do noivado que até se esquecera das motivações do pedido. Ah! Foram os olhos azuis. Isso! Os olhos mansos e ingênuos de São João e aqueles seios tesos, rijos, que despontavam do paletó. Também, ali naquela região, no meio do mato, não acharia coisa melhor, nem se procurasse com uma lupa. Não havia moça mais instruída e saída que Manoela. Fiava, cosia, lia, escrevia e cantava como nenhuma outra dentro de muitas léguas. Se tinha que se sujeitar a viver ali, melhor então abrandar o duro fardo da rusticidade com a convivência de uma mulher que em partes lembrasse as damas de Ouro Preto. 

Não a amava, claro, mas quem precisava saber disso? Aliás, nunca amara mulher nenhuma e isto nunca lhe causara problemas. Só lhe trouxera benefícios. Sempre encarara as questões do coração como melindrosas. Por isso, agia com cautelosamente, ajustava o comportamento às ocasiões e resguardava os sentimentos de contatos íntimos e afetivos demais. Tinha as manhas de gato sabido. Não se arriscaria a consumir liberdade e dinheiro com uma paixão corriqueira. Paixão é igual fogo, queima, mas passa, dizia o pai. E ele estava certo. O deslumbramento sufoca a razão, a empolgação desnorteia. Bem faz quem deles se livra. O bom homem é dono de seu destino. 

Manoela o esperava para o almoço. Aquela ocasião seria enfadonha, se não fosse a presença dela, risonha e faceira, solícita a acolher e agradar. Suportar a família de "abestados" não era tarefa fácil. Idalina irritava com a arrogância e impertinência de boa senhora. Cismada com tudo, crente em tudo, louca de tudo, tecia conversas desconexas, prolixas e moralistas. Quincas, uma caricatura dos ricos mais fracassados que conhecera em Minas Gerais, de tão tolo e desajeitado, causava-lhe um destampamento de risos internos. Onde já se vira, um homem rico, com um casarão daqueles, viver em mangas de camisa, conversando com pés-rapados e trabalhando na roça como um peão? Os filhos? Ah! Esses nem mereciam atenção. Mal lhes sabia os nomes. Eram a fusão caótica do pai e da mãe, sem melhorias e beneficiamentos.  A única coisa que valia a pena era a oportunidade de sentir o cheiro doce de flor de laranjeira de Manoela e tocar despropositadamente uma mecha de cabelo ou um pedacinho de pele. 

Outrora, ele, Brás José da Veiga, tivera as melhores mulheres em seus braços: filhas de coronéis, senhoras casadas e afamadas, prostitutas e virgens. Agora se contentava com a presença vigiada de uma camponesa goiana, cujo contato minguado se dava por meio de incidentes, aos quais ela não fazia a mínima questão de facilitar. Tempos de decadência, dizia o pai. Uma necessidade útil, contestava. Não tinha mais o que esperar. O tempo urdia. O pior já havia acontecido. Não adiantava chorar pelo leite derramado.  

Amor e distinçãoWhere stories live. Discover now