Capítulo 4 - Vida de mulher

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A água do Carapina, mansa e cristalina, seguia o fluxo sonoro, líquido e infinito de sempre. Lambaris  lambiscavam aqui-acolá, afoitos e ágeis. O vento brando acariciava os lírios-de-são-josé, cujas folhas tremulavam num chiadinho fino. As flores exalavam um cheiro doce, lembrança da pureza e da santidade do pai de Jesus, atraindo abelhas e mais abelhas. Na enseada, saracuras quebravam potes: três potes, três potes com corotes, revirando o chão úmido, festejando aquela manhã ensolarada. Um casal de araras azuis assentado numa imbaúba - descendente da sagrada e bendita imbaúba primitiva que servira de abrigo à Sagrada Família durante a fuga para o Egito - namoriscava. 

Num remanso, Maria Rosa esfregava as roupas dentro de uma bacia, enquanto Manoela as estendia no capim jaraguá para quarar. Concentradas e disciplinadas, pois a mãe era capaz de fazê-las lavar uma trouxa inteirinha novamente por causa de uma manchinha, refletiam internamente sobre os acontecimentos recentes . Os gritos de Constança ainda ecoavam vivazes em seus miolos. O cheiro ardido do sangue continuava impregnado na alma, enojando o estômago, num embrulho sem fim, ressurgindo dos panos que lavavam e mostrando-se materialmente em manchas pretas. 

Maria Rosa, tentando se distrair e afugentar aqueles pensamentos ruins de dor e sangue, puxou um bendito antigo, decorado integralmente somente agora aos seus quinze anos. Evocava as memórias de menina, tempos de antanho, em que mãe e Luíza, a irmã mais velha, vinham lavar roupa naquele mesmo lugar e ela, inocente, não tinha conhecimento algum sobre  o triste destino que a aguardava.  

 A voz, dissolvida em átomos sonoros, ganhou os céus a procura de outras Marias-lavadeiras, espantando as araras. Triste e desgovernada abriu chão, na esperança de um encontro acalentador. 

Senhora Santana ao redor do mundo 

Aonde ela passava deixava uma fonte 

Quando os anjos passam bebem água dela

Ó que água tão doce, ó Senhora tão bela! 

Encontrei Maria na beira do rio

Lavando os paninhos do seu bento filho

Maria lavava, José estendia

O menino chorava de frio que sentia 

Calai meu menino, calai meu amor 

Que a faca que corta não dá talho sem dor. 

Manoela, movida pelo senso de limpeza comum em momentos de histeria, pegou o camisolão de Constança pela segunda vez e o bateu ininterruptamente contra o batedouro. O pano uivava. A tábua estralava. Os braços movimentavam-se violentamente, erguiam-se e abaixavam-se ritmicamente, sem descanso, frenéticos. Precisava arrancar do coração aquele medo besta, antes que ele a tornasse outra Anne Elliot: amargurada, infeliz e arrependida. Uma maria-vai-com-as-outras. Mas quem garantiria que esse medo não era prenúncio divino? Ou um alerta a ela, pessoa que mal conseguia decidir com convicção a roupa que usaria no domingo seguinte? Por que a sociedade lhe impunha a obrigação de se casar até certa idade ou alistar-se voluntariamente no esquadrão das "tias" solteironas depois dos 20 anos? 

A sociedade nunca lhe pareceu favorável às mulheres e suas necessidades, mas às cifras cunhadas em seus ventres e forjadas por suas mãos. Logo, interessava-lhe unicamente o produto material que podiam oferecer. Tolhidas e diminuídas, o que eram senão bonecas nas mãos dos homens, forçadas a aceitar a história e o destino que lhes traçavam? Teria ela tinta e papel para escrever uma história autêntica e exclusiva? Qual seria o preço disso?

Maria Rosa, atordoada, levou as mãos às escadeiras:

- Será que a mana...? - os olhos amiudados grudaram-se no chão a procura de uma continuidade para a pergunta. As palavras fugiam-lhe - Eu acho que... Será que... você acha que aquilo volta ao normal?

Manoela passou um pouco mais de sabão no camisolão. A ingenuidade de Maria Rosa encantava. 

- Você se refere à...? - as maçãs do rosto enrubescidas. - Bem... Eu não vi essas coisas no colégio. Era um colégio de freiras, você sabe disso Lia... Não sei se posso responder sem falar besteira. Mas... Bem... As coisas sempre voltam ao normal. 

- Eu não acredito! Um dente quebrado é sempre um dente quebrado. Coitadinha da mana! Exposta como uma meretriz, sem dó nem piedade. Culpa do Tunico, culpa do papai que casou ela. Agora todos vão saber que ela... que ela fez aquelas coisas feias... E... podem chamá-la de égua velha com toda razão, pois eu vi! Eu vi a coisa mais feia dessa vida! - e debulhou-se em lágrimas, segurando o ventre, ansiada. 

A irmã a acudiu, acariciando-lhe os cabelos e trazendo-a para junto de si em um abraço. 

- Lia, Lia! Calma! Você só está assustada. É isso. Não é ocasião para se pensar em casamento, em filhos e partos. Uma coisa de cada vez, minha florzinha. Para que adiantar as coisas? Quando isso acontecer, você estará preparada. Deus dá o frio conforme a coberta, não é? Linda assim, poderá escolher a dedo o marido e, quem sabe, as coisas não sejam mais fáceis ao lado do homem que você ama? Quem sabe sua coberta não tenha olhos azuis e cabelos louros? Mamãe sempre diz que a maternidade é um dom. E eu não acho que ela minta ou seja uma meretriz por ter tido tantos filhos - rindo-. Mamãe se submeteu a dor semelhante a de Constança para nos trazer ao mundo. Só de ela ter feito isso, já merece ser venerada. Isso não é uma coisa boa, Lia? Olha o que Nosso Senhor... 

- Mas e as pessoas, Manoela? Você num entende! Eu no lugar da Constança nunca mais teria coragem de olhar para alguém. Ai, que vida, meu Deus! Que vida! Eu num vou me casar nunquinha! Viro pombinha de São João, mas não caso! Papai que me mate, frite ou faça freira, mas eu num caso nem amarrada. Se casar, dormir com marido é nenhuma noite. Fujo na festa. Fujo na festa e faço escândalo! Pobrezinha da mana, quase morreu engastalhada com o menino. Se não fosse mamãe... Ainda bem que mamãe ... - e engasgou com o choro. - E o marido? O bonitão do Tunico estava lá fora pitando e proseando, como se o parto de uma esposa fosse a coisa mais natural do mundo. Como se esposas parissem filhos com a mesma facilidade com que coam café. E se o mesmo acontecer comigo? - chorou com mais força. - E se mamãe não estiver viva para me salvar? Você viu o tamanho do moleque?  - e fez a medida de mais de três palmos de comprimento. - Isso aqui tudinho passou pela coitadinha da mana. Isso tudo!!! Para que que eu nasci mulher? Me responda, mana. Eu estou com medo! Meu Deus! Eu estou perdida! O que será de mim? 

Manoela a afastou de seu corpo. Ergueu-lhe o queixo para que a encarasse. Os olhos azuis relutaram, mas por fim consentiram. Estavam vermelhos e enuviados. 

- Por que você se importa tanto com as pessoas, Lia? No Mato Grande todinho não tem uma menina tão honesta e correta como você. Quem poderá julgá-la, ainda mais por, futuramente, se casar com as bênçãos de Deus e ser mãe? Ser mãe lá é algo errado? Pode ser feio o modo como se traz um filho ao mundo, mas ainda assim a maternidade é bonita, independente das condições que a mantenham. Eu dei uma uma sapituca só de ver, você não viu? Mas nem por isso desistiria de ser mãe algum dia.

Maria Rosa soltou um riso engasgado. 

- Eu vi. Mamãe disse que você é uma moleirona, pandorga. - e riu mais. - E que se for assim, nunca mais te chama pra cuidar de um moribundo, porque ela vai acabar tendo que cuidar de dois. Você e o doente. 

- Tomara mesmo que mamãe nunca mais me chame para esse tipo de coisa - e riu. - E você, mocinha, não deixe o medo tomar conta de seu coração e arrancar dele seus sonhos de menina, pois eu bem me lembro bem que você sonhava com um tal príncipe não sei de onde, que se casava com você não sei quando e lhe dava não sei quantos filhos. As coisas não devem ser julgadas antes de serem conhecidas e analisadas com propriedade, Lia. Ainda é cedo para você pensar nisso e tirar conclusões. Ademais, uma catástrofe ou uma tragédia pontual - que no caso de Constança não se consumou, benza Deus - não podem comprometer a totalidade de coisas boas que nos acontecem. Você não acha que Constança é feliz com o Tunico? Você não viu o sorriso dela quando recebeu o neném nos braços? Não se precipite, Lia. Você só está assustada. O medo tem dessas coisas: nos inferioriza, confunde.  É um espírito zombeteiro. 

Maria Rosa a abraçou pela cintura: 

- Eu só penso uma coisa: se você desmaiou no parto da mana, o que você fará quando for parir os seus filhos? Você é tão forte para umas coisas, mas tão mole para outras, mana. Eu não queria que você se casasse... - e abraçou com mais força. - Tenho tanto medo. E se mamãe não estiver

- Eu também não queria, Lia. Eu também não. - respondeu sussurrando. 

Amor e distinçãoWhere stories live. Discover now