Capítulo 2 - Amigas?

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O brilho apagado do sol dava às árvores um tom amarelado e melancólico. Alguns homens, com o pito na boca, de cócoras, riam e conversavam na porta das casas, enquanto as mulheres proseavam nas janelas ou nas cozinhas, a beira de fogões à lenha onde, na chaleira, a água do café borbulhava.  Lá longe, um menino gordo se esborrachava no chão. Caía desprezado, puxando um carrinho de lobeira. Olhara apressadamente para um lado e para o outro, em seguida. Sacudiu a poeira do corpo, cuspiu nos joelhos  e besuntou os ferimentos com as pontas sujas dos dedos. Em instantes tornou a brincar. No céu, a vermelhidão lutava contra os últimos tons de azul que se transfiguravam em preto. Do chão, subia um bafor úmido. A seca e a colheita não tardariam, com elas as festanças, os adjutórios e as treições também não. Os citadinos  estavam em polvorosa. 

Manoela e Teodora cortaram o largo do Rosário em diagonal, apressadas. Conversavam animadamente, indiferentes à euforia coletiva e o rebuliço comum a um final de domingo. 

– Teodora, conclui ontem a leitura de Persuasão!  A história superou minhas expectativas, honestamente – ponderou Manoela. – No início, não dei nada pelo livro. Indicações de Dindinha não são confiáveis, sabemos – gracejou rindo. – Se algum dia ela teve bom gosto literário, foi antes de padrinho morrer na guerra – complementou persignando-se com o sinal da cruz. – Desde que me entendo por gente, os livros trágicos e deprimentes são seus preferidos – parou por um instante e retirou uma pedrinha do sapato. – Esse – retomou – , não é trágico nem deprimente, é encantador.  Anne Elliot, uma moça de estirpe e família...

Teodora, uma moça encorpada, acinturada e alta, franziu as sobrancelhas, intrigada. A saia, um pouco mais justa que o normal, ressaltava o quadril largo e lhe dava uma promiscuidade abrandada pela falsa aura de modéstia. 

– Eu quero mesmo é saber de outra coisa, Manoela – protestou com um sorriso irônico. – Definitivamente, tanta coisa para pensar e você encasquetada com romances? – criticou. – Quero ver Jane Austen vir bordar seus lençóis e tecer suas cobertas. 

Manoela rindo, levou a mão à boca. 

– Acredito que os bordados de Jane seriam invejáveis. Não duvide, se ela estivesse viva e morasse no Brasil, não deixaria de convidá-la. 

– Você não parece nada preocupada com o enxoval ou o casamento – advertiu a amiga, séria – . Já vi que isso não vai dar em nada – previu segurando um riso sarcástico no canto da boca. – Enquanto você se preocupa com histórias de amor em livros, as pessoas se preocupam com sua história de vida – lamentou rispidamente, gesticulando com as mãos e olhando sempre para a frente – . "Será que agora ela casa?", "Vai casar mesmo?", "Manoela de Quincas? Aquela lá só quer enrolar os rapazes de bem"  –  afinou a voz em tom jocoso – . Você não acha que está na hora de um ultimato? – sugeriu em sussurros, um pouco mais afável –. Uma mulher não pode viver sem se casar. É a lei natural da vida. Ademais, você precisa provar para o povo que não é quem eles pensam... – suavizou.

– Não tenho obrigação de provar nada a ninguém, Teodora! – retrucou Manoela delicadamente. – Até parece que você não me conhece. Não acha que está informada demais? – alfinetou  sem fingir surpresa, um pouco alterada – .Eu não ouviria todos esses comentários sobre você, calada. Não ouviria mesmo – reforçou,  silenciando-se e contraindo os músculos da face. 

– Manoela, mas... você faz por onde –  rebateu convicta – .   Não acha? Há quanto tempo está noiva do Brás e nenhum sinal de casamento? Não é a primeira vez que você desiste de um casamento – frisou tripudiando – .   Todo mundo está torcendo por isso. E você não reage! 

Manoela desconversou. Não ofenderia uma amiga. Teodora falava sem conhecimento de causa. Quem era ela para tocar naquele assunto? Apenas uma mulher de trinta anos, entregue a solidão e o opróbrio, sem reputação alguma para falar de casamento e leis naturais da vida. Era  a sopraninho do padre Samuel e nada mais. Lacônica. Pelo santo se beijava as pedras. Pela amizade, suportava aquele gênio difícil. 

Amor e distinçãoWhere stories live. Discover now