Amor e distinção

Capítulo 9 - Quincas, um homem bom?

Heraque, um nortista de sangue quente e voz de trovão, esbravejou com os peões e deu ordens para que os últimos preparativos da treição na casa de sá Sabina, sogra do patrão, fossem ajeitados. Sogra nada, que todo mundo sabia que a velha era irmã de Idalina, mas quem se arriscaria a ressuscitar a história dos antigos? A vida tinha dessas fingilâncias.

Dez anos antes, o Bugre, como era chamado pelas costas, atracou no Mato Grande, trazendo consigo a mulher, Izordina, uma meia dúzia de filhos subnutridos e uns poucos cacarecos reunidos em dois sacos de estopa, carregados sofregamente por uma mula ruça, mais morta que viva.  Procurando abrigo, bateu na porta do coronel. Ofereceu serviço e lealdade. Em troca, pedia um pedacinho de chão para levantar um ranchinho e criar umas galinhas, a gosto de Deus. O tom que não foi de súplica, pois a isso ele não se prestava, tornou a negociação acirrada. 

O coronel, que a esse tempo tinha perdido seu capataz, o Tibúrcio, numa empreita custosa, viu um possível sucessor nos olhos negros e maliciosos do chegante. Sentia-se desguarnecido com aqueles homens que mal sabiam empunhar uma 380 sem um grito de comando ou executar a mínima tarefa que fosse sem lhes ser desenhada. Foi assim que Heráclito (nome que ninguém sabia pronunciar) se tornou o respeitado "seu Heraque", homem de pouca prosa e muita atitude.

Era cerca de 04 horas da madrugada. 

Por Quincas não teria aquela palhaçada de treição. Inclusive tentou demover Idalina do projeto mais de uma vez. Como ele, o coronel mais influente do Mato Grande, deixaria os sogros em situação de tamanha dificuldade a ponto de um socorro daqueles ser necessário? Cederia os homens quantos dias fosse preciso: colheriam o milho e colocariam no paiol, capinariam o quintal, arrumariam as cercas, limpariam o rego d'água. Fariam tudo bem feito. Serviço de primeira. A troco, bastava que ela aquietasse. Mas ela não quis. Fez bico e bateu o pé. A mãe não aceitaria uma humilhação daquelas naturalmente. Se sentiria diminuída e impotente. Que organizassem uma surpresa, na calada, e tudo ficaria dentro dos conformes. E assim, começou a convidar um daqui, outro dali, até que Quincas, vencido pelo cansaço e emburrado — jantara sozinho três dias seguidos — , marcou a data da tal treição. No fim, achou uma boa a tirada de Idalina e botou gosto. Economizaria a força dos seus homens e de sobra evitaria as conversas encostadas da sogra, cuja língua era espada afiada de um talho só. 

Encostado numa pilastra do alpendre, puxou um bom trago do cigarrinho de palha, imerso numa conversa consigo, de si pra si. Soturno, ouvia apenas os movimentos de Idalina e das filhas dentro da casa, correndo de um lado para o outro, ajeitando a sujeira feita pelo desjejum da turma; no terreiro observava a presteza de Heraque, sem se envolver. As ideias eram outras.

Idalina era mesmo uma mulher dura. Igual ela não havia nenhuma outra sobre aquele chão. Andasse e procurasse longe ou perto quem quisesse que não acharia umazinha sequer para colocá-la no chinelo. Nem sua Belisária, mulher nova, vivida e sabida, cujas tiradas tinham lá seus méritos, não se equiparava à inteligente Idalina. 

Suspirou. 

Aquele gênio duro dela é que lhe dava segurança, no fundo. Que homem não queria ter ao seu lado uma mulher de confiança, que fizesse seu dinheiro render e jamais se preocupasse com mesquinharias? Que homem não gostaria de ter uma esposa fiel e uma mãe honrada, que trouxesse os filhos em rédeas curtas e fizesse sua vontade prevalecer sobre todos eles, velhos ou novos, facilitando sempre os comandos do pai? Tomando por base as esposas de amigos, cujas grandes preocupações se limitavam a vestidos da moda, joias, chás, livros e visitas diplomáticas, Idalina era mesmo diferente, porém um diferente para melhor. A primeira a acordar no casarão e a última a dormir desde sempre,  mantinha os mesmos hábitos do tempo em que ele, Quincas, era apenas Quincas de Adelino, nem nome próprio tendo como seu.