Durante o passeio, apreciando as beldades do lugar, ouvi uma bela canção vinda do pico de um monte. De longe, avistei o jovem Sael a tocar flauta. "Este sujeito ainda está por aqui?" perguntei-me.
– Oh! Doutor Viegas. – exclamou sorridente.
– Sael! Como está sua tarde?
– Uma maravilha.
– Que bom.
Ele sorriu, depois continuou a tocar sua canção. Fiquei ali parado, escutando-o. Era uma música triste, mas agradável de se ouvir.
– Creio que voltou para ouvir a minha historia. – disse dando uma pausa na canção.
– Só se não for inconveniente. – ele estava certo. Eu queria muito lhe ouvir. Queria saber mais sobre a família Velasques e o fim da de sua história. Se é que tinha um.
– De modo algum. Deixe-me ver onde terminei... Ah, sim. Na chegada da família Resende ao Velho Bosque.
"Sabe, meu senhor, é difícil odiar isto aqui. Logo as crianças se adaptaram ao lugar. Mercedes e Cristóvão corriam todos os dias pelos pomares, onde eu estava a cuidar. Goiabeira, jambeiro, mangueira e outras mirtáceas frutíferas forneciam a rodo suas saborosas frutas para quem quisessem apreciá-las. Havia várias delas pelo o chão e a senhorita Mercedes sempre se apressava para pegar um recipiente e ajuntar todas do chão para que quando chegasse à janta pudessem ter uma sobremesa para saborearem. Cristóvão sempre dizia que não comeria daqueles frutos por estarem cheios de bichos e por estarem no chão sujo. Mas o chão nunca estava sujo, eu sempre limpava, mas Cristóvão sempre alegava, para encrencar comigo. Dizia que se quisesse uma fruta subiria na árvore e pegaria ele próprio. Mercedes argumentava que os que se encontravam no chão estavam todos maduros, prontos para serem comidos. Mas Cristóvão dava de ombros e ignorava a sábia irmã que cantarolava ajuntando todas as frutas do chão.
Como era lindo o seu canto, tal qual o sopro nas árvores. Sua canção me aquecia, acalmava-me. Ver Mercedes sorrir, tirando a face outrora emburrada de sempre, talvez porque aquele lindo pomar agora fazer parte de sua casa, era satisfatório.
Certo dia, Cristóvão, já aborrecido por não conseguir pegar nenhuma fruta madura, apenas verde, começou a jogar pedras nos passarinhos que assobiavam juntos com a irmã. Em um de seus maldosos lançamentos, Cristóvão atingiu um passarinho que caiu inerte no chão com os olhos semiabertos. Uma lágrima caiu nos olhos de Mercedes, depois um choro estridente e triste que fez chamar a atenção de seus pais que estavam próximos; estes vieram correndo para o pomar.
– Por que está chorando, Mercedes? – perguntou atribulado o barão Orlando.
Mercedes, em um gesto infantil, apontou para o local do crime com o seu dedo indicador e com a outra mão vedava os seus olhos para não ver mais a maldade que o irmão fizera.
– O que tem debaixo desta folha de bananeira, Cristóvão? – Indagou seu pai.
– Não é nada não, papai. – disse Cristóvão, trêmulo.
– Deixe-me me ver isso, garoto! – disse o pai, já aborrecido.
Quando o barão Orlando se abaixara para ver o que estava debaixo da folha, Cristóvão se pôs a chorar, pedindo desculpas a seu pai que ficou muito triste com a má ação do filho com a natureza.
– Não peça perdão a mim, filho. Peça perdão a Deus, pois você acabou de matar uma cria dele.
Meu respeito e admiração por aquele homem se engrandeceu ainda mais.
A família Resende foi apresentada por muito respeito pelo Padre Dom Roberto à igreja lhe dando boas vindas em nome de toda a população da cidade. Em seguida vieram palmas e uma breve oração para abençoar os novatos e os demais. A missa então chegara ao fim. O barão Orlando e a madama Resende ficaram um pouco mais para conhecerem melhor seus vizinhos. Mercedes e Cristóvão se irritaram, pois já queriam ir para casa. Uma freira indicou a eles um parquinho que ficava atrás da igreja ao qual às crianças não hesitaram ir. Seus pais lhe pediram muito cuidado e que não se afastassem de lá. A madama Resende pediu para que eu e Edite os reparassem.
Chegando ao parquinho, onde os brinquedinhos eram demais de tentadores, Cristóvão foi de imediato para o balanço o que deixou Mercedes seduzida, porém tinha uma obrigação: cuidar de um lindo gatinho que havia encontrado, miando na sebes. Mercedes Resende não podia ver um bichinho abandonado que corria para lhe apaziguar. Enquanto isso Cristóvão experimentava todos os brinquedinhos do parque e fez várias amizades incluindo futuros amigos da escola. Eu e Edite ficávamos apenas olhando, desejando também brincar com eles.
Mercedes, então, não conseguindo mais se controlar, deixou o gatinho nas mãos de Edite pedindo para que ela tivesse o maior cuidado do mundo com o bichano, e foi saciar a sua vontade de brincar no parquinho junto com as outras crianças e o irmão. Porém, após o tio Anselmo chamar Edite para o ajudá-lo com algo, esta deixou o gato em minhas mãos e foi correndo acudir o tio. Mas o gatinho não queria ficar no meu colo, e me agatanhava todo, então lhe coloquei no chão e o bichano correu como um coelho corre de seu predador.
Aconteceu que algumas maldosas crianças avistaram o bichano primeiro que eu e começaram a jogar pedras no pobre do animal. Achei-o sem vida, circundado de pedras. Inocentemente, segurei o gato, pensando que ainda estivesse vivo, foi quando Mercedes apareceu pálida como a nuvem, vendo o gato morto em minhas mãos.
– O que você fez, seu monstro?! – disse a menina, chorando.
– Os meninos o mataram. – defendi-me, angustiado.
– Você vai tostar no inferno, seu monstro! Onde está àquela maldita índia aleijada? Eu deixei meu gatinho sob os seus cuidados. Onde ela está? Seus monstros! – gritava furiosa.
– Ela deixou o bicho para mim enquanto foi chamada pelo o meu tio Anselmo.
Afastei-me da ira de Mercedes, e, ao pegar o bichano para enterrar ali mesmo, onde havia sido morto, a menina, furiosa, endemoninhada, aproximou-se de mim e me deu uma cusparada em minha face.
– Eu odeio vocês dois! – e correu para dentro da igreja.
Olhando o bichano, sem vida, comecei a chorar. Peguei o pobre gato, fiz um buraco com um pedaço de lajota solta, e o enterrei".
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O Vale das Lembranças
SpiritualEm uma breve, porém pertinente visita de Dr. Viegas ao Vale das Lembranças, fizera reacender ao jovem médico o respeito e a admiração do amor ao seu semelhante. E não, não um simples amor, esquecido, levado pelo tempo. Mas um amor contumaz. Que cai...