"Em nossa casinha, situada atrás do Vale das Lembranças, na parte detrás, bem além do poço, eu segurava uma cruz e orava para que Deus fizesse o melhor para mim. Meu tio Anselmo falava por horas com o senhor Orlando, à frente da mansão, eu sabia muito bem o que falavam. Estavam decidindo meu futuro, futuro que ao qual não me pertencia mais.
As minhas orações, no entanto, não surtiram efeito. Meu tio Anselmo veio até mim com um semblante no rosto e uma expressão rude. Ainda tinha a esperança que desistisse. Tio Anselmo proferiu:
–Bem, Sael. Não queria que a nossa relação terminasse assim. Você é um ótimo menino, porém precisa de um bom direcionamento, e eu sou um homem demasiado ocupado em lhe direcionar melhor, meu filho. Você é um garoto de um coração dilatado e muito eficiente no que gosta de fazer. Você precisa de uma boa modelação e, com certeza, você vai adquirir isso em um colégio interno. Não me olhe como vilão, garoto! Por favor! Não me deixe sentir culpado por me afastar de você. Todos aqui pensam que eu lhe exploro, assim como Edite, quando, na verdade, apenas benzo pelo o bem de vocês. Você sempre insistiu em me ajudar no jardim, desde que tinha seis anos de idade. Eu não quero que o seu futuro seja este, Sael. Nem o seu e nem o de Edite. Eu espero que um dia vocês sejam livres e constituam uma família. Ah, como eu quero isto. Você ainda é muito jovenzinho para se ocupar tanto assim. Isso foi um empecilho nos seus estudos. Olhe para mim, filho. Já preparei suas coisas. Amanhã mesmo você vai para a cidade de Outeiro do Norte onde localiza seu futuro colégio, colégio que ao qual lhe fará um cidadão digno. Está tudo acertado, Sael. Já falamos com os responsáveis do instituto. Eles lhe aguardam amanhã às dezesseis horas da manhã. Já falei com o Seu Ribeiro também, e ele lhe levará até o seu destino. Um dia você vai agradecer a este velho por ter feito isto por você, meu filho. Espero que cresças por lá, e adquira sabedoria, sensatez e obediência. Não se torne um pedante, mas sim um homem de naturais qualidades. Eu provavelmente ainda estarei por aqui, mas pretendo, quem sabe um dia lhe visitar. E sim, vou lhe visitar em seu novo lar. Pode aguardar minha visita, meu garoto. Agora vamos dormir que amanhã será a nossa despedida. Boa noite!
Aquelas palavras de meu tio pareciam impulsos que, segurados por um objeto cortante, perfuravam o meu coração a cada movimento.
A minha noite foi torturante e não demorou nada para que raiasse o dia. A escuridão ia cedendo ao clarão da alvorada abruptamente. A insatisfação para que não chegasse o amanhecer só acelerou sua iminência.
A manhã estava tão úmida. Tão úmida como os meus olhos. Em minha vertigem, nem percebi que havia caído o leve chuvisco. Olhei pela janela de meu quarto e enxerguei os pingos da chuva que deslizavam pelas folhas das árvores. Os passarinhos se mantinham agasalhados e as flores esperavam o calor do sol para se exporem. As nuvens negras deixavam o sol cada vez mais oculto e o vento soprava o seu bafo gélido. A frustração da natureza agora se intensificava, pois a chuva remetia um abominável toró que deixava O Velho Bosque intransitável.
Eu contemplava toda aquela cena sentado no meu quarto com um semblante demasiado taciturno. De repente me veio um estrondo da porta, e não, não era a natureza, mas sim os punhos da mão de meu tio Anselmo que me mandara me apressar, pois apesar do dia aparentar um retardo, já eram oito e trinta da manhã.
Meu desjejum foi um pedaço de pão e um copo de leite quente. Esperei cerca de meia hora sentado no banco de madeira de frente da casa. Olhava para a janela de Mercedes, mas ela não estava por lá para me acenar. Para pelo menos, me dizer adeus.
A chuva dava uma trégua, mas ainda deixava escapulir algumas gotas. Lá fora, ouvi os passos dos cavalos. O senhor Ribeiro já se encontrava disposto a me levar ao meu destino. Edite me abraçou fortemente, como que impedindo que eu não fosse embora. Choramos abraçados. Tio Anselmo se despediu friamente de mim, porém, mostrava-se claramente inquieto e esboçava lagrimar, mas elas eram contidas por seu inseparável orgulho. Eu, no entanto, não segurei as minhas, e elas foram escorrendo pela a minha face e molhavam a camisa dele assim como as gotas da chuva escorriam pela a folha da samambaia.
Tio Anselmo, vendo-me em um estado emocional bem forte, virou-se por não suportar me ver chorar daquela forma, e foi embora sem ao menos proferir o que queria dizer a mim antes de partir. Nem mesmo a palavra 'adeus', disse o meu tio. Era a última vez que eu o via em vida. Meu valente tio. Talvez não tivesse dito para não se sucumbir aos prantos.
Assim foi a minha despedida doVelho Bosque. Vi, na ombreira da mansão dos Resendes, o meu senhorio Orlando, acenando-me, desejando-me uma boa viagem. Acenei de volta e o vi entrar, fechando a porta para a chuva não entrar. A chuva voltava e embaçava a minha visão pela janela da carruagem. Eu queria tanto me despedir de todos, principalmente de Mercedes. Talvez a chuva fora inimiga naquela hora e a impedisse de se despedir de mim. Ou talvez, não. Talvez Mercedes desejava minha distância.
O veículo então saía da cidadezinha e se dirigia para o destino de Outeiro do Norte. Uma viagem a contragosto é sempre instantânea. As quatro horas de viagem se passaram abruptamente".
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O Vale das Lembranças
SpiritualEm uma breve, porém pertinente visita de Dr. Viegas ao Vale das Lembranças, fizera reacender ao jovem médico o respeito e a admiração do amor ao seu semelhante. E não, não um simples amor, esquecido, levado pelo tempo. Mas um amor contumaz. Que cai...