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"Acredito que fora há uns dois ou três dias depois, assim que recebi o convite para me apresentar ao exército, que, do jardim do Velho Bosque ouvi lamúrias estridentes. Meu querido barão Orlando não estava mais entre a gente. Havia sofrido um ataque cardíaco enquanto lia um livro em sua poltrona de baloiço. Corri apressado e vi mãe e filha chorando no colo do meu senhorio. Cristóvão se encontrava ajoelhado, tão forte fora aquela imagem, e como chorei, oh, meu Deus. Amava aquele homem como se fosse o meu pai. O senhor Resende fora um grande amigo e mentor. Nunca conheci em vida alguém tão humano e sábio como ele. São pessoas únicas, raras. Muito do que sou hoje, agradeço a ele. Lembro dos seus gestos afetuosos e suas palavras de força e carinho.

O enterro do meu senhorio mexeu demais comigo. Vi a terra cobrindo o caixão, o homem voltando ao pó. Como a vida é séria. E como ela queria deixar bem claro aquilo.

Os lamúrios perduraram por dias naquela casa. Foi difícil fazer as coisas voltarem ao normal por ali.

Mas, como havia lhe dito antes, eu havia recebido um convite para me apresentar urgentemente ao exército, e assim tive que ir, uns quinze dias depois da morte do senhor Orlando, mal podendo consolar a senhora Veronica e minha amada Mercedes.

– Não demore a voltar, meu bem. – ela disse com as maçãs do rosto abatidas. – Eu não sei o que está lhe esperando, mas cuide-se. Volte para mim, está bem?

– É claro que irei voltar, meu amor. Logo estarei de volta e poderemos enfim nos casarmos.

– Oh, Sael. – ela me abraçou.

Contei a ela novamente o meu desejo de comprar o Vale das Lembranças  e ela sorria, com lágrimas nos olhos. 

– Em breve ela será nossa, meu amor. Não se preocupe comigo. Nada irá me acontecer. Logo estarei de volta para nunca mais sumir de seus braços.

Então nos beijamos, doutor Viegas. Oh, não me faça esta cara. Aquele fora o nosso último beijo. Se eu soubesse que nunca mais a teria em meus braços, jamais teria ido àquela maldita guerra, jamais a teria soltado. Eu sabia que as guerras levavam pessoas, e, fui pego de surpresa quando me disseram que iria participar dela, e que aquela seria devastadora, que o exército precisava de homens para lutar. Prometi à Mercedes que escreveria todos os dias. E assim foi. Relatava a ela todas as atrocidades do meu dia a dia. Eu não tinha outro assunto, e ela me dizia a lacuna que eu fazia em sua vida, e que aquela minha ausência só corroborava o tanto que me amava. Que nunca imaginava que eu tinha partido para a ir à guerra.

Foram realmente monstruosos aqueles dias em que estive por lá, doutor Viegas. Não dormíamos. Desabavam bombas por todos os lados. Perdi amigos honrosos. Numa noite de ataques, quando eu estava a cochilar, demasiadamente cansado, uma bomba caiu próxima de mim matando meus amigos que dormiam próximos. Consegui socorrer alguns acionando os enfermeiros que logo se apresentaram para os acudir. Eu, por outro lado, também precisava de socorros, pois também fora atingindo, não tão gravemente, como pensava. E fui levado também para à enfermaria mesmo relutando dizendo que estava bem. Não sei o que haviam me dado, só sei que dormi por dias e mais dias. Às vezes eu tivera a impressão de estar acordado correndo para os braços de Mercedes. Mas, antes mesmo de nos chocar, ela esvanecia, se reduzindo a fibras de cristais.

Depois de muito tempo, não sei lhe dizer a exatidão, eu acordei. Mas era outra sala, como se eu tivesse sido transportado para outro ambiente fora da guerra. "Quanto tempo eu dormi?", perguntei a uma enfermeira. Ela sorriu pedindo para que eu repousa-se mais um pouco. "Não posso!", argui. "Preciso me levantar. Caminhar um pouco. Oh, preciso escrever". A mulher pediu para que eu me acalmasse, pois logo eu sairia. Mas eu estava convicto de abandonar o hospital ainda aquele dia. Porém fui  frustrado mais uma vez por doutores. Homens e mulheres, vestidos de branco. Doutores. Anjos de Deus. Eu precisava realmente me regenerar, continuar, talvez, mais alguns dias no hospital. E assim fiquei. Porém havia escrito uma longa carta para minha Mercedes. Explicar a ela o porquê da minha demora. Não queria preocupá-la. Expliquei que havia sofrido um acidente, mas que estava bem. Que logo, logo estava voltando para os seus braços. Para o Velho Bosque.

E, alguns dias depois, recebi alta, e assim parti, em busca da minha amada".

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