Asas do outono (Em pausa)

Essa noite...

O resto da tarde foi literalmente um programa de casal, assistimos séries até o horário do treino dele, que eu fiz questão de acompanhar. Ethan tem o sonho de participar de uma Olimpíada. Não, ele diz que não precisa ganhar medalha de ouro ou algo assim. Meu garoto quer apenas sentir o clima de uma Olimpíada da maneira mais pura da expressão e eu acho que ele é capaz até de vencer.

Depois do treino, fomos para a casa dele estudar. Sim, nós estudamos mesmo, mas precisamos nos distrair por um momento. Fizemos uma pequena sobremesa e uma grande bagunça na cozinha, ninguém da casa reclamou, já que arrasamos na torta dois amores. Sim, é algo bem brega, porém foi a primeira receita que fizemos como namorados e é uma tradição da família dele.

Pelo que eu entendi, quem começar o namoro na família dele, tem que pegar a receita da geração anterior e acrescentar um diferencial só seu e de seu par. Pode até retirar o diferencial anterior e adicionar o de vocês. Enfim, se o doce ficar bom, quer dizer que o amor é verdadeiro e duradouro. O que nós fizemos de diferente? Colocamos pedacinhos de cereja no creme e ficou incrível!

Sinceramente, eu fiquei mais feliz com o resultado do que demonstrei. Nunca fui de ligar para tradições, mas o nervosismo estava devorando o meu interior. Acho que nunca vou esquecer daquele dia e nem da receita. Voltando para o dia atual, Ethan me levou para casa assim que acabamos a torta e aqui estou: de frente para a porta de tia Marjorie. Respiro fundo e adentro o espaço.

Primeiramente, sinto o cheiro de cachorro quente e sorrio. Os meninos estão jogando no quarto e é fácil deduzir isso a partir dos gritos exaltados e repletos de palavras que eu pouco entendo. Sigo direto para o banheiro e, depois, vou ver se minha tia precisa de ajuda.

- Boa noite, madame. - brinca ela com um sorriso sugestivo.

- Nem vem, tia! - um rubor esquenta minhas bochechas.

- Eu só falei "boa noite". 

- Sei. - aproximo-me da bancada e me arrependo quase imediatamente, pois as memórias de mais cedo invadem minha cabeça. - Precisa de ajuda?

- Não, querida. Apenas chame Carlo e Alex para mim. - concordo com a cabeça e obedeço.

Depois do lanche e de um banho longo, subo para meu quarto e até chego a me distrair com um livro de suspense, mas o sono chega forte. E eu realmente achei que essa noite tinha acabado por aí...

Um flash. Que tipo de lugar é esse? Por que essa guerra sempre volta a me assombrar? Mas estou com Ethan dessa vez e tento levá-lo para longe. Os sons são horríveis, há gritos distorcidos por todo canto e dilacerações. Minha cabeça gira, tudo está muito rápido. Alguém chama meu nome e eu ignoro, Ethan está apavorado e é a única coisa que me parece certa nesse meio todo. Murmuro diversas vezes a frase "eu vou te proteger" mais para me passar segurança do que a ele. Por uma idiotice, percebo que estou sem os óculos e isso me daria uma ótima vantagem, se eu soubesse controlá-lo. Principalmente para não ferir o meu garoto... 

Sem aviso, a visão some e outra surge. Estou em um balanço, debaixo de uma árvore já quase sem folhas. Na verdade, só há uma e está no topo. Encaro-a por um instante até que o vento carrega ela para longe. Como a inocente criança que sou na visão, corro atrás da tal folha. Por algum motivo, eu a quero muito, ao ponto de sair de perto dos meus pais somente para tentar apanhá-la. 
A grama não está tão baixa no pé do pequeno morro em que me encontro e chega a roçar na barra de meu vestido. Percebo também que estou descalça, isso acaba por me proporcionar uma sensação de liberdade maior do que eu sou capaz de abraçar.
Quando a folha some de minha visão, estou perdida. Tecnicamente, é só seguir na mesma direção pela qual vim, mas só consigo encolher meu corpo no chão e chorar. Até que um barulho atrás de mim chama a minha atenção, será mamãe ou papai? Não... Não é...
Um monte de folhas iguais àquela que eu estava perseguindo se ergue do nada, como uma onda alta, e quebra sobre mim.