Motorista

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Pontos de interrogação tão grandes, tão pesados contra minha cabeça. Giro mais em minha cama do que qualquer peão de crianças que brincam nas ruas pacatas desse bairro. Pensamentos, pensamentos, confusos e sufocantes. "Despertado", não poderiam estar falando comigo, não é? Caramba... Caramba... Aquilo não é normal!
Mas que droga! O que é normal? O que é ser normal? Eu não tenho esse conceito na pele e isso é fato, mas... Kendra e Marjorie... Elas também não são normais? Será que sabem de alguma coisa? Será que sabem de mim? Meus pais não deviam só viajar a trabalho? Duvido até que eles tenham feito faculdade de turismo de verdade.

O sol se ergue majestoso lá fora, em um contraste perfeito com a minha insônia desesperada por respostas. Era para dar tudo certo no outono! Quer dizer, eu vou me casar e ter uma vida... Comum. Não... A quem eu estou tentando enganar? Querendo ou não, eu nunca serei comum, nunca serei como as outras mulheres. E, aparentemente, as mulheres da minha família também não.

Mulheres... Será uma maldição feminina? Já li um livro com algo assim e não deveria ser possível, certo? Queria poder confrontar minha tia, porém isso deixaria claro que ouvi sua conversa e não me parece muito certo. Por diversas vezes, pego o celular e considero ligar para Ethan ou, até mesmo, para Julie, mas desisto antes de clicar no contato. Quem entenderia uma garota falando "minha tia fala com uma vela que tem a voz da minha mãe"?

Com as ideias a mil, tenho que fingir pura normalidade o dia inteiro. Cada minuto que passo na escola é mais uma ficha de arrependimento. Eu poderia ter mentido, falado que não estava me sentindo bem, qualquer coisa para fugir das aulas que me torturam. Esse é um dos poucos dias em que engajo nas explicações dos professores, pois me tiram do caos que está minha mente. Acho que a pior parte de eu ter vindo é que meu noivo não para de perguntar o motivo de eu estar estranha, já que me conhece tão bem.

Mentir e omitir coisas de quem eu amo não é uma tarefa fácil e imaginar que há pessoas que fazem isso por diversão é assustador... O conceito de amor, para mim, é como um diamante lapidado: transparente, belo e valioso. Porém a mente humana é capaz de distorcer tanta coisa... Tantas palavras... Tantas ações... Será que a sociedade seria melhor sem a capacidade de sentir? E não falo só de amor, falo de sentir em todas as interpretações da palavra. Seríamos vazios? Ou seríamos completados por outras coisas tão inebriantes quanto o sentimento?

O sinal da saída toca como uma esperança de que ficarei melhor. Murmuro para Ethan que estou atrasada para resolver minhas coisas sobre o casamento e saio da escola sem olhar para mais ninguém. Chamo um carro pelo aplicativo e ele não tarda a chegar. Durante a viagem, fico de fone e distraio-me com a engraçada transformação de casas térreas e coloridas para prédios altos e cinzentos. Com um pouco mais de dinheiro, peço que o motorista me espere e tenho a estranha sensação de que cada edifício do meu condomínio entorta-se para frente. Como se quisesse acompanhar cada passo meu.

As sombras, compridas e ameaçadoras, parecem titãs curvando-se perante uma pequena formiga. E posso sentir olhares sobre mim, muitos deles e tão presentes que poderia jurar que são as janelas dos apartamentos. Tento focar no meu destino, apressando meu caminhar dentro do possível. Tudo está estranho, diferente... Mas, ao mesmo tempo, está tão igual quanto antes. A sensação para assim que fecho a porta atrás de mim.

A máquina de costura, meu velho salto creme e o colar de ágata amarela que tia Marjorie me deu são os objetos que pego. Ainda assim, olho o lugar todo antes de ir, mas nada me salta aos olhos como essencial. Na volta desajeitada ao carro, o sentimento de estar sendo observada fica tão forte que não dou três passos sem olhar para os dois lados. E eu poderia considerar como uma simples paranóia que aquele desconhecido plantou em mim no Pop Koff, se não tivesse visto vultos rápidos entre os carros. Distraída, bato contra alguma pessoa e caio sentada no chão.

Nesse momento, faço algo que tenho certeza de que me arrependerei até meu último suspiro: ergo os olhos até o rosto da pessoa. Pouco consigo captar do rosto oculto por um capuz preto, apenas um par de íris azuis e frias. O arrepio que me rasga o corpo é tão forte que começo a tremer, como se tivesse mergulhado em um rio congelado. O breu lançado pelo pano sobre sua cabeça parece esticar-se e tomar conta de todo o meu campo de visão, tudo que me resta são os dois círculos gélidos e intimidadores. A ausência de sentimentos é profunda como um oceano e ameaça me engolir ali mesmo.

Segundos, minutos, horas... Perco a noção de tempo, assim como a capacidade de desviar o olhar. Também sinto como se minha identidade estivesse sendo sugada por ele ou ela, não sei. Porém parece ser um caminho de mão dupla e, por um instante, consigo ver a humanidade por trás daquela imensidão azulada. Alguém quebrado, rachaduras feitas pelo medo, pelo tempo, pelo coração partido... Azul... Essa palavra e cor começam a tomar conta de mim.  A sensação de que estou sendo carregada para fora do corpo fecha o caminho do ar aos meus pulmões. Nunca na minha vida desejei desmaiar, mas para tudo tem a primeira vez. Quem é essa pessoa? O que ela quer de mim?

Paralisada e sem forças, não consigo mais resistir à influência quase mágica daqueles olhos e posso sentir minha enxurrada de pensamentos e memórias serem puxadas pela pessoa. Até que uma movimentação diferente em algum lugar me dá esperança e o azul, antes mortal como uma lâmina, fica quente e acolhedor: é o céu.
Viro minha atenção para dois seres que parecem discutir não muito distantes de mim. Está tudo tão embaçado que só consigo perceber que uma das pessoas é a da capa. Alguns clarões são disparados um contra o outro e palavras distorcidas chegam aos meus ouvidos sem um pingo de nexo.

- Isso vai te ajudar. - depois da "briga" terminar, a pessoa sem capa aproxima-se e recosta um gargalo em meus lábios, derramando uma bebida que conheço muito bem: sidra de maçã. Meus sentidos voltam aos poucos, assim como a consciência e a noção de tempo e espaço. - Agora mastigue isto. - algo parecido com uma bala mole inunda meu paladar com um sabor adocicado e revigorante. Como um remédio eficaz, a cortina turva diante dos meus olhos se dissipa instantaneamente. - Consegue levantar?

Afirmo com a cabeça e um par de braços fortes passa por minhas costas. Trôpega e semelhante a uma bêbada, retorno ao veículo parado em frente ao meu condomínio. Sento-me no banco do carona e minhas coisas vão no banco traseiro. O homem, que parece ter saído de outro século com suas costeletas grossas e bem aparadas, sorri gentilmente enquanto liga o carro. Em pouco tempo, já estou bem e levemente constrangida com o silêncio. Tenho muitas perguntas e sobre tudo, mas ele está dirigindo, não seria muito prudente...

No fim, foco minhas energias em não esquecer todas aquelas sensações. Com certeza há muito mais do que eu imaginava... Mas não há respostas... Em canto algum! É como se eu fosse a última pessoa a saber de tudo e, sempre, por intermédio próprio. Não olho a janela com medo de encontrar aquela figura sinistra pronta para tirar a alma de meu corpo sem uma mísera palavra. A viagem toda me parece mais longa do que o normal, mas lá está a casa de tia Marjorie, tão linda quanto aconchegante.

Enquanto estou pegando a máquina e os saltos, sinto o motorista observando-me pelo retrovisor.

- Eles foram covardes de te abordar no outono. Eu sabia que estavam te seguindo, principalmente quando você faz tão pouco caso do livro que ele te deu. - sua voz sai firme assim que fecho a porta traseira.

- Mas o quê? - o carro dá partida antes que eu assimile sua fala.

Quando esvazio as mãos, procuro freneticamente o nome do motorista no aplicativo, entretanto não o encontro. É como se ele nunca tivesse existido... O que aconteceu no meu condomínio de verdade? Quem era aquele homem? Passo para o papel tudo que me aconteceu e as palavras exatamente como me foram ditas. A única pista de que aquelas horas não foram apenas um delírio confuso é a bala que ainda mastigo. Já cansada de tantos questionamentos sem resposta e interrogações sem fim, ponho-me a trabalhar nos uniformes com Bordô ao meu lado.

De algum jeito, eu tenho certeza de algumas coisas: a falta de calma não me levará a lugar nenhum; o motorista, querendo ou não, vai voltar a entrar em contato comigo; e eu fui tola ao pensar que era a única pessoa estranha do mundo. Há muito a ser descoberto por mim e, talvez, por outras pessoas. De qualquer maneira, o tempo irá cantar seus segredos no meu ouvido. Afinal, se eu não sou a única, os outros "únicos" chegarão até mim mais cedo ou mais tarde. O que me resta? Viver nos respingos escassos da normalidade em que me encontro.

Asas do outono (Em pausa)Onde histórias criam vida. Descubra agora