Mais um dia

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Reviro-me na cama mais uma vez, está quente... Muito quente... Jogo o fino lençol de lado e ele pousa delicadamente no chão atapetado. Levanto-me já sem sono e abro as cortinas.
O sol abraça o cômodo, espalhando luz e calor por onde vasculha.
Sinto-me fraca e tonta, mas consigo pegar duas nozes do porta-joias abaixo da janela e comer antes de cair para trás. 

Meu alarme dispara atrás de mim e eu tenho um sobressalto. Quando o outono vai chegar novamente? Bom, não importa. Um bocejo longo me acomete enquanto desligo o som estridente, seria ruim demais faltar só hoje para dormir até mais tarde?

- Aura? Já está acordada? - tia Marjorie grita lá de baixo. Ela tem uma audição e tanto! Isso significa que não posso fingir que não despertei.

- Estou sim, tia. Já estou descendo. - respiro fundo e abro as escadas do sótão. O cheiro de pão quente e café enche minhas narinas, sorrio para o nada e caminho até a cozinha.

- Seus pãezinhos vão sair do forno em dois minutos. Pode acordar os meninos para mim?

- É claro. - respondo sem muito ânimo ao abrir a geladeira e servir-me de leite de amêndoas. 

O quarto dos gêmeos está silencioso e escuro, chego a ouvir a respiração suaves das crianças durante o sono tranquilo. Por um momento, imagino o que podem estar sonhando.

- Carlo, Alex, acordem. Está na hora. - saio, deixando a porta aberta propositalmente. 

Uma bandeja de pães de cereais está me esperando na mesa, junto com queijos, mortadela, uma garrafa de café e uma cesta de frutas. Sento-me com um pão quente em mãos, mordisco-o e o calor sai em forma de uma nuvem fervente de lá de dentro.
Dois meninos chegam correndo e gritando, percorrem a mesa em energia infinita e abraçam a mãe, assim tenho o segundo sobressalto do dia. Eles não falam muito comigo e logo atacam a mesa como um furacão maluco.

Bufo e retiro-me em silêncio. Retorno ao meu quarto, pego o uniforme e jogo uma água no corpo antes de vesti-lo. Meia-calça fina preta, saia xadrez preta e amarela, blusa polo branca com detalhes em amarelo e uma capa longa com capuz e mangas longas. Está tão quente... Mas e se minhas marcas despertarem?
Dou de ombros, na sala tem ar condicionado, não tem?

Arrumo meus cadernos, meu estojo e desço para seguir para a escola. Um pão de cereais, biscoitos de amêndoas, geleia de madressilva e sidra de maçã em um cantil pequeno e discreto. Talvez eu esteja esquecendo algo, mas meu horário está levemente apertado. Pego as chaves e sigo para a porta sem falar com Marjorie, que está entretida com seus filhos.

- Aura, pode levar os meninos com você? 

- Desculpa, tia. Mas hoje não vai dar. Estou super atrasada e eles ainda não estão prontos. Beijo, fui. - disparo tudo em um fôlego só e saio sem olhar para trás. 

Em passos rápidos, pego o sentido do ponto de ônibus. Por sorte, ele não demora em vir. Consigo sentir olhares estranhos sobre mim, minha capa estilo medieval sempre assusta as pessoas e até que eu gosto disso. Há um lugar vazio e não hesito em sentar-me lá. Absorvo o tremor do transporte ao pousar minha testa na janela, porém um toque quente e intruso surge em minha coxa por cima da roupa.

Por um instante, impressiono-me com a ousadia do desconhecido. Qual é o motivo que leva um homem aleatório encostar em uma menina, menor de idade ainda por cima? Sinceramente, alguns homens são nojentos! Pego sua mão e retiro da minha perna, mas ele não entende o recado e volta a tocar em mim e, dessa vez, sendo mais inconveniente. 

Respiro fundo. Dai-me paciência, caramba! Entretanto, ao tocar novamente em sua mão, ele retira rapidamente, como se tomasse um choque.

- Aaaaa! Bruxa! Bruxa! - viro-me a tempo de ver o reflexo de minhas marcas na mãos dele, deformando-a e murchando-a. O desconhecido sai correndo e investe seu peso contra as portas do coletivo em puro pavor. Magicamente, elas abrem para fora e ele cai do ônibus ainda em movimento.

Asas do outono (Em pausa)Onde histórias criam vida. Descubra agora