Dia seguinte

12 5 0
                                    

O aroma forte de fritura gostosa inunda meu quarto e meus sonhos, há tantos presentes ainda embrulhados pelo chão que tenho que tomar cuidado para não pisar em nenhum. Sorrio, enquanto abro a janela e a cortina, a aliança reluz contra o sol suave outonal. Avisto Bordô dormindo como uma bolinha no meio do caminho de meu closet e tenho pena de acordá-lo. Sem demorar muito, sigo para a sala, dando de cara com a mesa do almoço já posta. 

- Bom dia, querida. - meu pai aparece com um semblante confuso. 

- Bom dia. Está tudo bem?

- Está sim. Por quê?

- Você parece preocupado.

- Não é nada. Obrigado pela preocupação. 

Mas ele está mentindo e isso é óbvio. Bom, se Arthur não quer contar, não vou insistir. Puxo uma cadeira e sento-me, até que minha mãe chega em seu robe de cetim azul celeste. Os traços estão rígidos em seriedade e a postura projeta certas nuances de intimidação sobre a sala. Internamente, sinto que algo está errado, estão escondendo alguma coisa de mim e eu detesto essa sensação. 

- Vocês podiam me ajudar a abrir os presentes, não é? - tento contornar o clima estranho.

- Não. Precisamos conversar, Aura. - Kendra dispara sem muitos rodeios.

- Sobre?

- Primeiramente, temos uma nova viagem marcada ainda nessa semana. Então é bom que já arrume suas coisas.

- Eu não preciso arrumar nada. Já tenho tudo que preciso na casa de tia Marjorie, de tanto que vou para lá. - retruco entre raiva e desânimo. - Qual é a outra coisa?

- Filha, você tem certeza de que... Quer casar? - surpreendo-me com a voz de meu pai. - Você é muito jovem, isso vai mudar toda a sua vida e... você pode mudar de ideia. - eles não podem estar falando isso. Minha calma some entre as palavras do casal.

- Eu não vou mudar de ideia. Não vou me arrepender e estou completamente ciente do que eu quero. - tento manter a voz controlada e respiração regular.

- O que estamos dizendo é que você não po... Não deve se casar agora. - essa correção rápida de Kendra não me passa despercebida.

- Não posso? Por que não posso? Quem vocês pensam que são para proibir o meu casamento? - meus pensamentos estão a mil.

- Somos seus pais, Aura. Estamos pensando no seu futuro. - essa é a gota d'água.

- Pensando no meu futuro? Vocês nem estão no meu presente e querem escrever o meu futuro? Vocês são meus pais apenas quando convém, então façam o favor de pegar esse voo o mais rápido possível e me chutar para escanteio, como já são mestres em fazer!

Kendra e Arthur ficam sem resposta, uma situação rara perante nossas discussões. Euclides, um homem de meia idade que nos ajuda nos serviços domésticos e cuida da casa quando estamos fora, surge com o último prato repleto de batata frita. Murmuro um "vou almoçar no quarto" e retiro-me, as lágrimas queimam mais o meu interior do que meus olhos. Quando me vejo só, deixo o corpo deslizar até o chão acarpetado. O choro é tão compulsivo e forte que chego a soluçar, aflora como lava de um vulcão em erupção.

Foram as poucas vezes em que me senti pessoalmente ofendida com as brigas ou as viagens, principalmente ao ponto de ficar triste de fato. Acho que a possibilidade de ficar longe de Ethan me atinge de uma maneira indescritível. Repentinamente, um conjunto de pelos quentes esfrega-se contra minha pele e eu somente aceito a companhia. Alguém bate à porta e eu tenho certeza de que é o senhor Euclides, todavia não consigo reunir forças para atendê-lo. Sussurro um "deixe aí mesmo" e o som de metal contra o piso indica que ele entende o recado, arrasto-me até as embalagens, procurando uma distração.

Asas do outono (Em pausa)Onde histórias criam vida. Descubra agora