Cap.3-Entrevista.

1K 141 8
                                    

Parva!

Era a única palavra que conseguiria descrever o papel que eu estava a desempenhar naquele momento. A vergonha e resignação não paravam de apitar,aquele seria o maior vexame de toda a minha vida.

A fila era enorme,todas nós lutavamos pelo mesmo lugar,mas eu...eu não chegava aos pés de metade ou um pouco mais das candidatas com quem disputava. Todas maquiadas e perfumadas,em sua maioria pescoços compridos e medidas apropriadas para o serviço. Pela conversa que escutava entre elas:algumas já tinham experiência,outras eram até modelos profissionais.

Estava perdida! Me perguntava o que ainda fazia ali naquela fila,mesmo sabendo que não iria passar. Se calhar quisesse convencer a mim mesma que tentei,que tentei fazer alguma coisa por quem fez tudo por mim.

Mas não me conformava,tive uma semana para me preparar para o casting,uma maldita semana, e a negligenciei.
Sem maquiagem,vestida de uma saia longa de capulana,um corpete azul que combinava com a saia e sandálias de salto grosso,sentia-me ridícula.

As primeiras dez raparigas saíram,em seus rostos terror, angústia, lágrimas... Que raios aconteceu lá dentro?

O silêncio entre as que aguardavam assim como eu se fez ouvir,a partir dali as piadas e contos esvaíram no ar,e apenas a ansiedade dominou o espaço. Mais dez raparigas e mais uma vez o ritual de terror se repitiu.

-Vocês são as próximas,escutem com atenção, entrará uma a uma assim que for chamada para falar com o júri,entenderam?- disse a senhora de cabelos cacheados e cílios mais longos que o verdadeiro cabelo dela.

Não tinha volta,havia mesmo chegado a minha vez. Sentadas aguardamos uma a uma pela chamada como a senhora brilhosa indicou.

-Amélia, Mafalala.- sim. Eles me chamaram Amélia Mafalala como se fosse o meu apelido,diziam que era uma questão de identificação,mas parecia que éramos animais,organizados por zonas,que forma pouco original para uma empresa de MODA.

Não que eu gostasse muito do meu apelido,na verdade eu odiava-o,se calhar não exatamente o apelido mas sim,a quem pertencia.

Submersa ainda naquele monólogo sobre as melhores formas para tratar as candidatas,o meu nome foi novamente chamado,ainda estava sentada?

-Me desculpe, sou eu.- levantei e fui encaminhada para a enorme cortina, atrás dela deveriam estar os jurados,respirei fundo.

Se eu vou passar vergonha, então eu fazê-lo certo.- sorri com o pensamento e abri a cortina.

A minha frente três jurados:Sr.Luís que já conhecia,um senhor barrigudo e careca,e uma senhora de óculos maiores que a cara totalmente portuguesa desde a cor da pele e o cabelo extremamente comprido.

-Bom dia a todos,o meu nome é Amélia e eu sou natural de Cabo Delgado,tenho dezanove anos e sou candidata à vaga de modelo fotográfica da Agência Alcântara.- repeti o mantra que havia ensaiado em casa.

Os rostos dos dois desconhecidos estavam petrificados,não gostaram de mim,era visível. Mas o Sr.Luís sorria como se eu tivesse tocado a arpa das sereias,era muito simpático.

Entre eles cochicharam um pouco e quando já não aguentava mais as pernas bambas,a senhora tipicamente portuguesa falou:

-Tem alguma experiência como modelo?-perguntou ríspida.

-Não.-respondi apertando as mãos na saia,nervosa.

-Então o que faz aqui?-perguntou de novo ríspida e eu não sabia o que dizer.

-Liana.-advertiu o Sr. Luís,com um olhar cúmplice,com certeza aqueles dois eram mais do que colegas.

-O que a motivou a vir ao casting?-perguntou o senhor barrigudo e trémula respondi:

-Eu poderia mentir,e dizer que sempre tive o sonho de ser modelo. Mas a verdade é que a minha família está a enfrentar problemas financeiros,e a minha mãe está muito doente,achei que poderia ser uma boa oportunidade para ajudar nas despesas.- a cada palavra que proferia sentia-me mais ridícula,com certeza muitas das outras candidatas usaram essa história de pobreza e sofrimento para acarretar lágrimas dos jurados.

Silêncio...

-É isso! Ela é exatamente o que nós procuramos, vocês não percebem?- cortou o silêncio o Sr. Luís.- Natural e verdadeiramente africana.- dizia entusiasmado.

-Amélia já tem o meu voto.-concluiu e os outros dois bufaram,não concordavam mas com certeza a palavra final era dele.

Toma Liana!

-Está ciente de que tem tudo que é necessário para o trabalho?-atacou a tal Liana,e não entendi o que ela queria dizer com aquilo.

-Tudo que é necessário?-perguntei incerta.

-Sim,este emprego vai mudar a sua vida por completo,estaria disposta a pousar nua por exemplo,ou cortar o cabelo,ou beijar outra mulher. A nossa marca é única em toda Europa e precisamos ter a certeza de que quem vai representa-la no próximo verão tem tudo que é preciso.

Estava mortificada. Eu que sempre achei aquela profissão fútil e putanheira, estava ali pronta para doar a minha cabeça ao que mais desprezava. O karma não é uma fantasia então.

-Está claro Luís. A rapariga nem consegue responder...-dizia impaciente a maldita da Liana. Ela não iria ganhar...

Ignorei a voz da consciência e ciente de todos riscos,engoli o medo e o meu próprio julgamento.

-Sim. Eu estou disposta a tudo.- respondi com o sorriso mais cínico que pude esboçar.

Depois de fazer uma simulação de sessão fotográfica,que os três pareceram gostar,fui dispensada com a promessa de que ligariam se eu fosse a escolhida.

Não havia muita esperança quanto a isso,sabia que não poderia ganhar,apesar do Sr. Luís ter me defendido,estava claro que não tinha nenhuma preferência por mim,era apenas simpático e amável porque também já fora modelo,e de certeza não tinha sido fácil chegar onde chegou.

Uma coisa que a minha mãe sempre diz é que devemos tratar bem às pessoas, independentemente do que estejamos a sentir,porque não sabemos pelo quê aquela pessoa poderá estar a passar. Ele com com certeza era um desses seres humanos.

Caminhei para casa como se nada tivesse acontecido. Ninguém sabia da minha aventura,ninguém sabia daquela entrevista,ou senão a mamã se passava e já podia imaginar os boatos que iriam espalhar.

Com o estômago ainda revirado e a cabeça na lua abri a porta,mas antes que cruzasse o quintal, lá veio a minha prima:

-Chegou a santa que começou a namorar.-disse irónica, tentei ignorar mas ela prosseguiu.-E devo dizer,que péssimo gosto!

Do que ela estava a falar eu não sabia,não tinha namorado,a não ser que...

-Do que estás a falar?

-Nada, só do facto de seres uma marandza¹ de whites² agora.-concluiu vitoriosa.

Não não não. Se ela sabia então todo o bairro também. Eu estava tão lixada!

Glossário:

Marandza¹- mulher interesseira.

Whites²-pessoas de pele clara, geralmente estrangeiros.

Amélia[COMPLETA]Onde histórias criam vida. Descubra agora