O dia em que as novatas chegaram foi sem dúvidas um completo caos sonoro e visual. Tudo era bagunça no pátio, burburinhos aqui e ali, meninas perdidas tentando se achar em algum lugar, e a banda marcial desfilava até o palco com direito a toda diversidade de instrumentos dourados de percussão e sopro. Ainda não sei dizer se aquilo tudo era uma recepção ou o próprio apocalipse acontecendo cedo demais.
Assim que recebi a etiqueta com as informações sobre meu alojamento e deixei a barraquinha vermelha, soou por todos os alto-falantes do colégio, um alarme estridente ardendo os ouvidos de qualquer um que estivesse lá, chamando a atenção de todos para a senhora que falava do palco com um microfone desregulado, num pedestal pouco mais alto que ela.
-Moças, sejam bem vindas ao Carlos Cattaneo!- as veteranas aplaudiam, pude ver as meninas da barraquinha vermelha, Valentina e Anna, sorrindo atentas às falas da freira.- Eu sou Irmã Cecília, a principal coordenadora das suas próximas atividades letivas...
Irmã Cecília era uma senhora amável, do tipo que te tratava como neto e carregava balas de caramelo nos bolsos, sorria para as crianças e tricotava os próprios cachecóis no inverno. Sempre fora muito amável comigo, até mais do que eu merecia, sinto por tê-la decepcionado tanto naquele ano.
Seu discurso teve palavras bonitas e mantras compostos principalmente por conselhos religiosos que eu talvez soubesse se meus pais tivessem me levado à catequese quando mais nova, mas de religioso em mim só havia um crucifixo dourado no pescoço, e a crença comum de que todas as coisas bonitas que eu descobrira no mundo não poderiam jamais ter saído de um caos desconhecido. Ela nos avisou sobre a semana de aulas ter início apenas na próxima segunda-feira, para que as novatas estivessem familiarizadas com o local e até se enturmado mais com as outras; o uso dos uniformes, claro, era obrigatório dentro do internato; nada de visitantes, bebidas alcoólicas, cigarros ou festas, obviamente. Também nos informou sobre os horários das refeições, as rezas todas as sextas-feiras por volta das seis da tarde, disse que os finais de semana eram livres para sair e visitar os pais (claro que as coordenadoras teriam de ter ciência disso), e principalmente sobre o toque de recolher."Ás dez e meia da noite algumas irmãs estarão passando nos quartos para ver se já estão na cama, ouviram meninas? E se uma de vocês, nos finais de semana, tiver que sair mas voltar no mesmo dia, deve ser também até às dez e meia. Não se esqueçam"
Lembro de quando irmã Cecília se despediu com um sorriso afetuoso, desejando um ótimo dia à todas, recebendo aplausos e elogios das representantes do comitê de boas-vindas, suas mãozinhas pálidas acenando, deixando o palco apenas com os músicos da banda e seus instrumentos metálicos refletindo o brilho do sol, que parecia cada vez mais quente naquele início de tarde.
A multidão foi aos poucos se dissolvendo, pude ver o pátio onde estávamos já quase vazio e parcialmente limpo daquele tumulto, e me surpreendeu como era um lugar bonito: o piso era de um mármore claro fazendo-se destacar a decoração no verde das árvores que rodeavam o pátio. E eu era uma garota perdida ali no meio, quase alheia ao que ocorria ao meu redor, uma pilha de nervos e pensamentos, parada feito estátua com uma mala numa mão e um envelope na outra, sentindo falta de casa, preocupada com meus pais e a empresa, questionando em todos os porquês como que aquela garota e seus olhos inesquecíveis já sabiam meu nome, estranhando não poder agarrar-me aos braços de Alice e sentir seu cheirinho frutado misturado com chiclete de menta, me convidando pra sorrir.
Eu já provava do gosto amargo que era a saudade da vida deixada para trás, podia senti-la desbotar como se o mundo que conheci estivesse aos poucos perdendo a voz e descolorindo, feito os filmes antigos que assistia com mamãe nas noites frias de domingo; meu sonho não havia sido totalmente largado num canto de casa, ele ainda sabia meu nome, ele ainda gritava no coração jovem de uma sonhadora que tentava desesperadamente calá-lo e não conseguia. Eu sabia que tinha deixado um pedaço meu no meio da estrada e não poderia voltar pra buscar, mas o futuro bonito e idealizado que eu construí e desejei havia viajado comigo no porta-malas do carro, rastejado até mim, servindo como uma lembrança dolorida do que poderia ser mas repetia a mim mesma que não seria.
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❝ Summer Wine ❞ + kth
FanfictionEm 1987 a Itália foi nossa casa, dos subúrbios aos os bairros nobres. Éramos filhos do vento, corríamos livres por todo canto, nossos pés caminharam por todas as praias, por todas as cidades, sorriamos para todos os céus, dançávamos no apocalipse qu...