II. Inverno

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É claro que aquele fim de outono seguiu da maneira mais previsível possível. 

Lembro das tardes aconchegantes em que sentava no sofá e Dona Teresina me ajudava a tricotar cachecóis; um reality show passava na TV de antena, e da cozinha vinha um cheiro de café recém-passado.
 Frequentemente via meus pais preenchendo papeladas, tendo diálogos sérios, sussurrados de modo que eu não pudesse ouvir, trocavam olhares indecifráveis; haviam mistérios entre eles que eu pensava não serem da minha conta. Pensava.

Houve uma noite em que fizemos macarronada juntos.
Mamãe estava radiante, seus olhos verdes pareciam duas esmeraldas brilhantes furtadas de sonhos luxuosos, papai cantava "Champagne", a música que ele dizia ouvir na juventude, agora perdida nesse homem que carregava nas costas o fardo da vida pesada que vivia, enquanto eu fazia o molho de tomate assistindo à cena: sorrisos escancarados, olhares paternos de carinho, cheirinho adocicado de amor e refrescante de manjericão salpicado no ar.
Mil e uma histórias da infância de papai eram postas à mesa junto aos talheres prateados e pratos de porcelana que refletiam as luzes douradas do lustre; taças de um licor forte que eu não podia experimentar tilintavam em brindes "à união da nossa família", nossas tradições italianas colocadas em prática no fim de um domingo que na teoria, seria agradável.
Mas naquela noite, eu me lembro de estar indo para o meu quarto de pés descalços, com o pijama azul-céu quando passei pela porta entreaberta do quarto dos meus pais e a curiosidade me chamou para ouvir a conversa escondida:

-Você e eu sabemos exatamente como ela pode reagir à isso, Martin...- a voz de mamãe soava como um suspiro preocupado.

-Rosa, é necessário...ela nos agradecerá depois, você verá- papai disse calmo, com o tom de voz de quem faz menção de colocar um ponto final no assunto- sem contar que ela vai fazer 18 anos no próximo verão, já vai saber tomar conta de si mesma.- àquela altura eu não sabia o que escutava ou que eles queriam dizer, não entendia o que ouvia, e sentia uma ponta de ansiedade por isso.

-Não lhe parece errado?- a voz doce de mamãe ecoou sozinha.

-O que?

-Ora...que contemos à ela só na noite de...- o barulho de um isqueiro sendo aceso cortou o resto da frase, e o cheiro de cigarro flutuava no ar, me sufocava e me lembrava das últimas vezes em que os vi fumando: a crise que empresa passou em 82 quando eu tinha 13 anos; o primeiro aborto que mamãe passou na mesma época em que o irmão dela, o tio Michelangelo, sumiu em Roma e foi encontrado nos subúrbios da cidade com roupas encardidas e rasgadas, balbuciando seus poemas de versos brancos e bebericando uma garrafa de rum vazia, fora levado à um hospício.
Não era novidade pra mim que meus pais encontravam nos cigarros acesos tarde da noite, uma espécie de refúgio silencioso; talvez, para eles, colocar o cigarro entre os lábios funcionasse como um lembrete gentil de que era necessário inspirar fundo e expirar lentamente, uma maneira de manter a calma, mesmo sabendo que por dentro deles tudo era bagunça e fumaça. Aquela era uma dessas situações inquietas, de decisões difíceis a serem feitas, de preocupações assustadoras, de dúvidas terríveis, e eu sabia que meu nome estava envolvido dessa vez.

-Querida, não se torture com isso, venha cá.- pela frestinha da porta eu os via sentados lado a lado na cama, numa espécie de conforto, nesses abraços de consolação. - avisaremos à ela no começo da primavera, já que o ano letivo começa a partir do dia 24 de março, vamos avisá-la dia 21, para que ela se prepare, se despeça dos amigos e veja que dessa vez, as coisas tem de tomar esse rumo.

-Deixá-la sem escolha, Martin? não se sente culpado avisando tão em cima assim?

-É necessário, Rosa...se avisarmos antes ela dará um jeito de mudar os planos. Lá é um bom lugar, ela só vai estranhar um pouco no começo mas ficará bem, tenho certeza. Somos os pais, é necessário darmos ordens para o bem dela, mesmo que pareça cruel e... veja, não é, é apenas...necessário.

❝ Summer Wine ❞ + kthOnde histórias criam vida. Descubra agora