"Você já teve um sonho, Vitale? um sonho impossível?"
Ainda me recordo da textura das páginas descuidadas, o aroma caseiro de livro emprestado e verdadeiramente amado que levei debaixo do braço pelas ruas do bairro, fazendo meu caminho de volta ao internato.
Pulsava atrapalhado o coração descompassado por uma ansiedade sem nome, eu sorria e nem sabia, olhando o cenário da noite se erguer no céu encontrava-me em uma espécie de paz que a gente raramente sente quando fica à toa e de bem com a vida por nenhum motivo em particular, algo como a sensação serena que existiu todas as vezes nas quais esqueci qual era meu sobrenome e o peso-tonelada que ele tomava sempre que eu olhava para o inadiável janeiro de 1988 sentindo os tão falados calafrios na espinha, os famosos já citados temores que vivi como "a garota mais sortuda da Itália".
A cada instante eu via as ruas se enxerem de carros polidos, brilhantes e invejavelmente importados, cheios de adolescentes com bebidas nas mãos cantando alto os versos da música que o Guns n' Roses havia lançado recentemente, todos compartilhavam do mesmo espírito-essência de anjo rebelde, iam para qualquer lugar onde pudessem correr o risco de viver eternamente no sonho de uma noite de verão.Eu tinha o sorriso do poeta-menino- perdido pousando no livro de versos ainda não lidos e reservados para o momento em que eu finalmente chegasse no meu quarto, desenlaçasse a fivela dos sapatos e visse Valentina de volta depois de semanas fora, em sua cena frequente de colar adesivos brilhantes em lugares em que a sua parede ainda apresentasse frestas da tonalidade pêssego por entre os enormes pôsteres do Tom Cruise ou do Jon Bon Jovi, com as janelas escancaradas, as malas no canto e suas roupas dobradas em cima da cama feita em uma organização perfumada.
Meu caminho de retorno depois daquela tarde de domingo e meu diálogo desconcertado com Taehyung, foi calmo e pensativo. Notei que a noite trazia aos céus astros antigos e às ruas, jovens sorridentes, e eu quis ser um deles. Quis ser a garota de cabelos longos e ondulados ao vento e batom de morango nos lábios, a garota dirigindo no banco encourado de um desses conversíveis Mustang 64, uma mão no volante e a outra livre e estendida ao céu, às estrelas, visualizei Alice e seu sorriso vibrante no banco do copiloto colocando fitas da nossa banda preferida pra tocar mais alto que nossas próprias vozes cantando sem ressalvas a música pela via principal deserta; quis ser essa garota, e por um momento quis ser aquela estrela perto da Lua também. Imaginei se um dia eu seria capaz de parecer tão eternamente livre e viva quanto eles.
Acontece que os jovens queriam o mês de julho não só pelas férias, mas pelo verão que saturava as cores do mundo e os levava à praias e festas-na-piscina, entregava sorvetes de chocolate, milkshakes de morango, limonadas doces e geladas em bandejas prateadas, brilhantes, trazia o amor pra mais perto, para vivê-lo quente, para tê-lo com febre.
Todos esperavam que aquela semana fosse extraordinária, fosse a própria chance de viver um último julho como inconsequentes que dançam e amam, e fogem como se não houvesse esperança de amanhã. Era o último verão em que a maioria dos veteranos dos colégios e internatos daquelas bandas poderiam aproveitar o centro da bela e cintilante Verona assim: fazendo besteira com o pretexto de ainda não ter consciência total sobre os próprios atos, ou de simplesmente querer desfrutar de sua juventude antes que fosse tarde demais e eles já vissem em um mundo cinza e monótono que fedia à café fervido e remédios anti-stress, antes que eles se tornassem adultos pro resto da vida.
Era esperado que fosse vingada uma época na qual era permitido sorrir ao quebrar regras simples e tolas com as próprias mãos sentindo-se o ditador de um mundo justo e quase real, era o momento que vinha reservado para a vida de qualquer um, um verão que prometia trazer diálogos bonitos em juras de amor.
Uma vez sendo a última semana de férias de verão de tanta gente, ninguém era capaz de segurá-los ou de violar seus valores de santa juventude infinda. Nada poderia pará-los, a estrada os conduzia para qualquer lugar em que o rock penetrasse nas veias e a bebida fosse licor de cerejas por conta da casa.
Eles eram belos pássaros azuis e livres, e eu era o par de olhos castanho-claro que observava esses detalhes e ia na direção oposta, eu era apenas garota que andava àquelas horas sozinha dentro de um vestido amarelo com um livro surrado e emprestado debaixo do braço.
Naquelas noites, eu ainda era somente o objeto de herança dos Vitale.
Dobrei várias esquinas barulhentas das inesquecíveis festas gritantes do centro, caminhei sem pressa ou sequer algum tipo de preocupação pelas calçadas até chegar aos pés da Via Sistina, avistando de longe os tons de branco-pérola do enorme Carlos Cattaneo. Quando atravessei os seus grandes portões escuros, me dei conta de que a tranquilidade que eu sentia era fruto da minha habilidade extraordinária para deslembrar eventos importantes com os quais eu realmente devesse me preocupar, como por exemplo o fato de que as aulas começariam mais cedo no internato, na tarde do dia seguinte, e eu mal havia organizado meus materiais ou uniforme, tudo estava uma bagunça terrível no meu lado do quarto, já se passavam das sete e meia da noite e eu não queria passar horas em claro arrumando o guarda-roupas, tampouco tentando achar um lugar onde eu enfiaria o livro que o "garoto perdido" havia me emprestado.
![](https://img.wattpad.com/cover/214256744-288-k740434.jpg)
VOCÊ ESTÁ LENDO
❝ Summer Wine ❞ + kth
FanfictionEm 1987 a Itália foi nossa casa, dos subúrbios aos os bairros nobres. Éramos filhos do vento, corríamos livres por todo canto, nossos pés caminharam por todas as praias, por todas as cidades, sorriamos para todos os céus, dançávamos no apocalipse qu...