REALIDADE REVIRADA - por VERÔNICA LUIZE

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Já passara das vinte e três horas; o Joe’s Pub ainda tinha muita gente dentro, o que significava que eu teria de trabalhar até depois das duas. Entre servir uma mesa e outra e reabastecer os copos de jovens rapazes bêbados, um rapaz peculiar me chamou a atenção. Seus olhos eram perfeitamente azuis, rosto de formato quadrado, cabelos não muito longos e extremamente negros; vestia jeans e uma camiseta gola em V. Ele fez um breve movimento com a mão, me chamando para trocar o copo de cerveja. Eu me aproximei e pedi licença.

– Sim, Alice, à vontade.

– Você sabe meu nome? Eu te conheço de algum lugar?

– Sim. Garotas como você não deveriam trabalhar em pubs, nem caminhar sozinhas à noite.

– Já vou trazer-lhe uma cerveja bem gelada. – Ele tinha me assustado. Desconversei e fui até o balcão, voltei com a cerveja. – Oh, é por conta da casa.

O pub era de temporadas, essa noite, em peculiar, era a “NerdNight”.  Não haveria bêbados para jogar na rua e nem carregar para dentro da ambulância; nerds não bebem muito. Já era quase uma hora quando o pub começou a esvaziar e o rapaz de olhos azuis ainda me olhava – agora parado, se preparando para dar uma tacada numa partida de sinuca.  Ele me fitava, como se... Como se me desejasse. Limpei algumas mesas, levei a louça para a cozinha e, ao passar por Joe, ele me deu um sorriso triste. Achei que ele estivesse apenas cansado e sorri de volta. Voltei ao pub e o rapaz havia ido embora. Joe, por sua vez, me liberou para ir embora. Dei um beijo em sua testa e saí.

O Joe’s Pub fica a duas quadras da Praça da Alfândega, seguindo pela Andradas; após a praça, a uma quadra, fica o meu apartamento. Segui o mesmo rumo de sempre, exceto quando cheguei perto Banca da Praça, onde toda manhã compro meu jornal e falo com o “seu” João. Ouvi uma respiração pesada a poucos passos de mim. Logo após, escuto:

– Corra! Alice! Corra!

Mesmo depois de tantos anos, ainda não sei dizer se corri por instinto ou por seguir ordens. Corri, dobrei uma rua, uma quadra antes do meu apartamento, nem me vi passar pelo Quintana conversando com o Drumond; simplesmente, corri.

– ALICE!

Parei. Aquela voz...

– ALICE!!!!

Cheguei ao prédio onde eu morava, entrei e tranquei a porta da rua. Subi os quatro lances de escadas e parei em frente a minha porta, encarando-a. Estranho que a Dona Luiza, senhorinha de uns 65 anos, que “cuida” de mim e que mora no apartamento em frente ao meu não apareceu

  Abri a porta e entrei. Ela parecia ranger mais alto que da ultima vez. Simplesmente apaguei na cama, vestida, fedendo a cigarro e suada. Virei para um lado e comecei a sonhar com o rapaz “bonitão” do pub. Agora eles jogavam sinuca para se divertir, exceto esse rapaz. Concentrei-me alguns minutos, até descobrir o nome dele: Rodrigo.  Não foi um grande sonho, confesso, mas mexeu comigo. Acordei duas horas depois, com a sensação de ter dormido uma eternidade; levantei e fui trabalhar. Vesti meu uniforme e coloquei o crachá, eu trabalho em uma agência bancária, meio exclusiva para clientes ricos. Tinha uns vinte minutos de caminhada até lá. Peguei meus fones e segui.

Quando cheguei à Praça da Alfândega, a banca de jornais de “seu” João estava fechada. Segui até o café da praça, também fechado. Parecia que eu não estava ali, mesmo estando. Tentei me lembrar de alguma coisa; tinha a sensação de esquecer algo muito importante. Até eu lembrar, continuei seguindo para o trabalho. Vi inúmeras pombas; Porto Alegre sempre tem pombas. Se elas sumissem, aí sim tinha algo errado. O tempo estava ameaçando chuva e o vento estava cortando minha pele, estava frio demais para março.

Noites SombriasOnde histórias criam vida. Descubra agora