Prólogo

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O alvo balançava cadenciadamente e o jovem adolescente contava os microssegundos que guiavam cada arrastar do círculo. Ele poderia ser impulsivo e tentar apenas acertar, mas não tinha sido treinado para isso. Tinha de ser rigoroso e, acima de tudo, paciente, se queria ter um melhor resultado.

A luz do sótão pestanejou, ao sentir a carga de energia que começava a emanar da arma. O garoto pressionava o gatilho com o indicador direito, e o olho oposto permanecia fechado. A sua mão tinha uma estabilidade invejável, não tremelicando, nem quando a prima deixou cair um objeto da prateleira. Que desleixada era aquela pequena criança! Nunca chegaria aos seus pés, isso ele tinha a certeza. Ainda que os dois partilhassem o tom de pele quase dourado, que denunciava as origens africanas da família, e até mesmo a coloração mais escura dos olhos e cabelos, mais nada unia os dois descendentes.

De tantos ensinamentos que lhe eram passados diariamente, aquele era o momento preferido do jovem rapaz. Seus olhos brilhavam com a sensação de poder que emanava de seus poros quando empunhava a arma criada por seu bisavô. A corrente, que lhe subia pelas mãos acima, invadia todo o seu corpo de adrenalina, de excitação. "Como seria disparar contra um alvo a sério?", perguntava-se muitas vezes, lamentando só poder alvejar coisas sem vida.

Deixando, por fim, o ar cativo libertar-se de suas entranhas, o dedo soltou-se juntamente com o dióxido de carbono que expelia de seu organismo como um veneno mortal. Ele poderia matar, se quisesse. Ele sabia como.

Um som forte ribombou pelo espaço, deixando o sótão mergulhado na escuridão por um mísero segundo. Logo de seguida, veio o baque derradeiro da energia a colidir na superfície dura. E depois o choro. Um choro agudo e lancinante como se uma vida tivesse sido roubada. Não fora. Daquela vez não, nem em nenhuma das anteriores.

O homem adulto, que quase parecia o reflexo, originado por um espelho desfasado no tempo, do mais novo, colocou a mão sobre o ombro de sua cria, ignorando os berros da criança que o irmão lhe havia confiado. Ele sentia um orgulho tremendo e ninguém estragaria essa sensação. Fitando a negritude recente, posicionada na perfeição no centro do alvo, ele soube que seu filho estava preparado para qualquer adversidade que o esperaria fora da Redoma. Porque esse dia chegaria. O homem conseguia sentir que aquele era o Destino de seu filho. Poderia ter sido o seu, o de seu pai, o de seu avô, ou de tantos outros que o haviam antecedido, mas ele sabia que era o Destino daquele que tinha sido seu tão esperado descendente.

− Nada tema, meu filho. – O jovem voltou-se para o progenitor, ainda com uma faísca remanescente nos seus olhos quase negros. − Use a força que você tem aí dentro, − o pai pousou a mão no peito magro do filho, − e nada, nem ninguém, o poderá travar. Nós nascemos para grandes coisas. Traremos a luz para Villeneuve e a nossa família ficará gravada para a eternidade.

− Assim será – respondeu, imerso numa oração interna.

Deus abençoava a sua existência, ele sentia isso toda a vez que disparava a arma. Quando o choro desenfreado cessou, também a garota estava convencida disso mesmo. Não era ela que Deus protegia, sua inocência era roubada sempre que o gatilho era pressionado. Seu primo seria o salvador. Ele era o escolhido. E a ela? Só lhe restava calar e aceitar.

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