Capítulo 7 - Água abençoada

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− Pessoal, não vai dar para avançar mais! – Gaston berrou para que fosse ouvido pelos homens instalados na parte detrás da carrinha. Ele afundou o pé no travão, antes mesmo de receber aprovação do general.

Killian levantou-se do lugar, intrigado com a ousadia do ex-prisioneiro. Não era a ele que cabia tomar as decisões.

− Mas o que é que... − O general emudeceu ao deparar-se com a paisagem enquadrada pelo vidro da frente do veículo. Os bancos traseiros estavam todos recolhidos, mas, mesmo assim, ele tinha dois vidros entre ele e o exterior. – Aquilo é...?

− O rio Loire – completou Taupe abismado. A cabeça calva descia para o aparelho entre as mãos, para logo depois voltar a subir. Ele repetiu os simples movimentos umas três vezes, porém o dispositivo firmava posição. − É o rio.

− Encontrámos, general! – berrou o soldado em contraste com o estado apático dos seus companheiros. O entusiasmo levou-o a sacudir as costas do seu superior. – Encontrámos! Encontrámos!

LeFou acordou sobressaltado, vendo a fera rugir na sua direção. O coração batia forte no peito com as imagens tão vividas, tão reais, a alimentar-lhe o receio.

− O que... − balbuciou o convalescente, agarrando-se ao colchão e procurando algo de familiar ao seu redor.

− Calma! Está tudo bem. – Taupe tentou tranquilizar, aproximando-se do amigo. – Não temos amendoins, mas temos água. – O ex-republicano levantou o pesado garrafão metálico do chão. – Você pode beber o quanto quiser!

− General? – A entoação era clara, o soldado pedia a permissão que faltava.

Todos os homens aguardavam, em suspenso, as ordens de seu superior. Até Gaston mantinha-se quieto e calado no lugar do condutor.

− Vamos a isso! – A frase saiu-lhe como um grito de guerra. Um general a comandar seus homens para a linha da frente, era isso que ele parecia. E o rio, tão pacato, apenas esperava por eles.

Killian saltou para fora da carrinha e liderou a frente da excursão.

Do outro veículo, parado uns metros mais atrás, os Rayne e os restantes soldados saíam sem saber o que se estava a passar. Com o homem que costumava ir ao volante enfermo, Jofrey fizera questão de assumir a responsabilidade, tornando a viagem um pouco mais atribulada. Os passageiros sentiam o corpo amassado e os músculos tensos, caminhando sem qualquer vitalidade. Apenas Soline, abonada por uma exaustão extrema, havia conseguido dormir durante o trajeto.

As ervas, naquela zona tão próxima do rio, eram bem altas e camuflavam os invasores até à cintura. A aproximação era feita de uma forma contida e gradual, com os passos meticulosos do general a estudar o terreno. Não poderiam avançar de olhos fechados como outrora. O luxo do desleixe quase que lhes custara uma vida.

O vento embatia contra os soldados, determinado a levá-los na posição contrária. Como aliados, os grossos caules agitavam-se em torno do grupo, dificultando ainda mais o seu avanço.

Sobre as cabeças da comitiva, o céu mostrava-se zeloso, escondendo o sol daquele momento tão esperado. As nuvens cobriam cada pequeno espaço, confundindo-se umas nas outras.

Uma singela gota, húmida e fria, caiu sobre a testa do general, fazendo-o estacar e olhar para cima. Outra gota lhe seguiu, descendo pelo rosto que afrontava o céu cerrado. Killian levou a mão à face, escorrendo os dedos pela água e fitando-os, de seguida, procurando a prova ocular que lhe faltava. Mas o céu não sangrava, limitava-se a chorar. Um choro silencioso, que não se deixava ver.

O que poderia ser tristeza foi interpretado como felicidade divina. Deus abençoava a chegada da humanidade ao Novo Mundo. Os Homens renegados ao direito da vida na Terra voltavam a ser aceites. Isso era o que a maioria pensava ao sentir as primeiras gotas, leves, refrescantes, a tocar-lhes na pele.

− Gente... − Soline chamou, tentando despertar a atenção dos homens vidrados no céu. O seu tom de voz era trémulo, contagiado pela preocupação crescente que a ia consumindo. – Acho melhor nós voltarmos...

As palavras lançadas ao ar, fracas, inseguras, alimentaram uma ira velada. A chuva tombou numa enxurrada, com grossos e pesados pingos a embater com violência contra os corpos desprevenidos.

− Voltem para as carrinhas! – A mulher gritou em alarme. Com os braços, ela tentava montar um telhado improvisado sobre si. As mãos completamente ocultas nas mangas largas da camiseta. – Voltem para dentro!

O general percebeu na expressão de Soline que o caso era sério.

− Agora! – ordenou Killian, empurrando os homens mais próximos de si.

A comitiva recuou numa correria desordenada. Eles não sabiam do que estavam a fugir, mas o medo estava lá, palpável em cada movimento precipitado. Alguns protegiam a cabeça com os braços, imitando a jovem que corria na frente. Outros levavam a mão ao cós das calças, preparando-se para as feras invisíveis que os caçavam.

Nileya, que assistia a tudo do outro lado do rio, julgava aquele comportamento muito estranho. Que tipo de criatura se assustaria de tal forma com uma simples chuva? Claro que Soline não agira irracionalmente. A água era uma potencial transmissora de toxicidade. E ainda que a floresta fosse densa e viçosa, esta poderia ter criado mecanismos de defesa de que os habitantes de Villeneuve estavam desprovidos. As destruidoras chuvas ácidas, do pós-Terceira Guerra Mundial, tinham sido contornadas com a redoma e nada garantia o seu desaparecimento definitivo naquela nova Era. Pelo menos, não antes da jovem Rayne realizar os testes necessários.

Não era estranho que aquelas duas mulheres, tendo crescido em contextos tão diferentes, fossem guiadas por crenças antagónicas. Soline suportava suas certezas e suas dúvidas na ciência. Mas a nativa não. Nileya via na mesma chuva, que a outra julgava uma ameaça, uma tentativa de purificação da Natureza. Ela sentia a água a limpar-lhe a pele imunda, a grudar-se na poeira do passado e a levá-la com ela. O solo, debaixo dos seus pés descalços, tragava os grãos, numa promessa de esquecimento eterno. Chuva, para a nativa, era sinal de renovação, recomeço.

Nileya, encoberta pelas ervas selvagens da margem do rio, observava os Homens a fugir da chuva. Ela não sabia o que eles eram, mas reconhecia-lhes a forma humana, o que deixava o mistério ainda mais apelativo. O rio trouxera-lhe uma novidade inesperada.

Quando as carrinhas se acercavam da margem, a nativa já deambulava no outro lado, com os pés a fincar as terras férteis e húmidas. Era um hábito que lhe trazia paz de espírito. Se não estivesse a nadar, estaria certamente nas redondezas, a tentar acompanhar a corrente com a sua passada, ao seu próprio ritmo.

Ela vira-os chegar. Primeiro, os animais gigantes, que pareciam não ter olhos, nem boca. À distância a que se encontrava, não lhe foi possível antever os Homens, através dos vidros empoeirados. Mas, depois, surpreendentemente, eles surgiram, vindos do interior das enormes criaturas.

A nativa sabia que não deveria estar ali, que o melhor teria sido correr para bem longe, mas ela deixou-se ficar. O grupo aproximava-se e ela inclinava o rosto para a frente, pronta a captar o mínimo detalhe das suas expressões. Porém, para sua frustração, o céu manifestara-se contra aquele encontro, protegendo os estranhos humanos dos olhos curiosos da jovem.

Nileya esgueirou-se, sem se levantar por completo, usando a vegetação rasteira como escudo. Os fios brancos, ensopados em água, colavam-se-lhe nas costas curvadas. Se ela os tinha visto, eles também poderiam notar a sua presença do outro lado do rio. Havia que ser cuidadosa.

Ao embrenhar-se na densa floresta, a nativa começou a correr. Ela ainda não poderia respirar de alívio. A sua tribo precisava saber sobre os novos ocupantes das terras Sombrias.


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