Capítulo 5 - Não estamos sozinhos

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A terra, ligeiramente húmida, servia de tinta para a criatura que rebolava sobre ela. Seu tom esverdeado era invadido por uma mancha acastanhada, cada vez maior. As pequenas patas eram usadas para deslizar o corpo para a frente e para trás. O controle dos movimentos da criatura assegurado pelas membranas entre os dedos, que ofereciam resistência e o impediam de deslizar colina abaixo.

Ocasionalmente, o animal fechava os olhos e mergulhava o focinho, esfregando-se com regozijo. Mas a terra não lhe chegava às pálpebras cerradas, que se mantinham bem afastadas uma da outra. A dureza do solo não era vencida pelas investidas da criatura e a cabeça não conseguia abandonar, por completo, o seu tom de origem, agarrando-se ao verde da vegetação que os cercava. Dois teimosos nunca poderiam ser vencidos por um único ser obstinado.

Os seus próprios grunhidos abafados impediam-no de ouvir qualquer outra coisa. No topo da cabeça careca, a antena flexível balançava de um lado para o outro, sem captar as subtis vibrações das folhas, que se agitavam na ausência do vento.

Aquele estranho ritual estava a ser observado. Por entre os arbustos rasteiros, um vulto movia-se com precisão para não alarmar o alvo.

Uma mancha veloz saltou no ar e cobriu, na totalidade, o animal ao aterrar no solo. O anfíbio viu seu porte considerável a ser esborrachado por um par de braços, que lutava com as tentativas de fuga bem escorregadias. O coração pouco provido da criatura só desacelerou quando seu olho direito viu o sorriso afoito da jovem que o capturara.

− Almon, você está tão escorregadio!

O animal aproveitou as gargalhadas de Nileya para se afastar. O riso alegre roubara-lhe as forças.

Almon enfrentou a garota de frente, mas era como se lhe estivesse a dar as costas. Seus olhos não apanhavam nem um único ângulo da intrusa, acocorada no epicentro da lama que o animal tinha reclamado para si.

− Você não consegue resistir, não é mesmo? – A jovem passou os dedos pegajosos pelo cabelo, para consertar a ordem de seus longos fios platinados. Por todo o corpo, intercalava-se o negro da terra molhada com o empalidecido tom da sua pele. Nem os pouco trapos que a adornavam haviam saído incólumes do confronto. – Não vai conseguir conquistar nenhuma fêmea se continuar se esfregando na lama.

Os dois corpos encolheram-se em espelho. O animal não tinha como perceber as palavras da língua da nativa, mas ele compreendia-a como ninguém. Na verdade, a voz tinha sido projetada em crescente desanimo. Não era uma reprimenda, mas antes um conselho para si mesma.

− Mas você fica até mais bonito assim – acrescentou, depois de olhar o amigo de alto a baixo. A terra estava de tal modo impregnada na pele naturalmente humedecida da criatura, que quase parecia que aquela era realmente a sua cor.

Almon sentiu o recheio doce na entoação das palavras e soube que estava a ser elogiado. Aquele já era um rumo que o interessava bem mais. Girando um pouco o corpo, ele vislumbrou a amiga.

No rosto de Nileya, desenhou-se um sorriso genuíno, que resplandecia de cumplicidade. A antena proeminente da cabeça do anfíbio esticou-se no ar, atenta a qualquer outro sinal de elogio. Porém, o silêncio havia assentado com a poeira.

Inconformado, Almon projetou a longa língua para fora e lambeu o braço da humana.

− Almon! – Nileya esfregou o braço molhado para retirar o excesso da saliva. A substância quente e viscosa grudava nos vestígios de lama ressequidos na sua pele. – Eu sei muito bem o que você quer! Bicho vaidoso!

Lá isso ele era! Cobria-se de terra por capricho, não era nenhum instinto de sobrevivência, nenhuma técnica de camuflagem. Pintava-se porque podia. A Natureza dava as cores e ele brincava com elas. Muitos diriam que não usava a inteligência proveniente de bruscas e sucessivas mutações, mas antes a desperdiçava. Talvez nem se tratasse de inteligência, de todo.

Almon era o único da espécie que recusava o chamamento do rio, passando a maior parte do tempo com as patas bem assentes na terra. Muitas vezes, caminhava lado-a-lado com Nileya, assumindo a postura bípede de um humano. Mais um maneirismo sem explicação aparente.

− Vem cá. – A jovem fez sinal com as mãos para que o amigo se aproximasse.

Almon não perdeu tempo e atirou-se para o colo de Nileya. Desta vez, fazia-se prisioneiro de livre vontade. Enquanto era massajado na cabeça, o animal balbuciava pequenos sons de agrado. Isso não fazia dele um animal menos selvagem que os outros. A jovem não era dona dele. Os dois viam-se como pares, como iguais. Faziam companhia um para o outro, para se sentirem menos sozinhos nas suas diferenças.

Uma estranha claridade invadiu o horizonte onde a jovem fixava os olhos. E, logo depois, um zunido agudo chegou-lhe aos ouvidos. Incómodo e persistente. Almon também o sentiu, ainda que nada tivesse visto por estar de costas. A sua antena vibrara percetivelmente com o estímulo de tão elevada magnitude.

Nileya largou o amigo e caminhou pela vegetação rasteira, aproximando-se do precipício. Os cabelos brancos balançaram com uma ténue corrente que ainda se sentia no ar, mas aos olhos nada mais se fazia presente para além do que ela sempre se habituara a ver.

Lá em baixo, o rio continuava a correr livre e solto, sem ter fim. As árvores, tão pequenas àquela distância, mantinham-se firmes na terra, com as raízes a reclamar moradia permanente. Essa disparidade refletia-se nas retinas atentas que perscrutavam a Natureza. De um lado, o azul límpido das águas do rio. Do outro, o ébano, duro e resistente, dos troncos que rompem do solo. Dois olhos, duas vontades a guiar-lhe a alma. Contudo, naquele preciso momento, com a curiosidade espicaçada, era o olho esquerdo que mais lutava por ver algo de diferente na paisagem. A mais pequena coisa seria suficiente para ela. Um subtil sinal de que o seu papel no mundo era mais do que aquilo que lhe diziam.

Não veio, claro. Mais uma vez, ela falhava a encontrar um propósito para tudo. Talvez tenha sonhado, ponderou, sem deixar o queixo pequeno e redondo cair pelo precipício abaixo. Havia uma chama dentro dela, escondida por debaixo da lividez da sua pele, que não se extinguia nunca. Ardia incessante, reforçada por um comburente que não tinha nome, nem forma.

Sem saber, Nileya fitava o Destino, tinha-o debaixo de mira, sem o conseguir realmente ver. O vestígio do disparo chegara até ela como um presságio. Mas ela não tinha como saber o rastro de sangue que se formaria, dali em diante. 


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CURIOSIDADES E ANOTAÇÕES

Na língua de Nileya o seu nome se pronuncia da seguinte forma: Náile + iá

O nome do amigo dela é pronunciado assim: Ále + móne


Em alguns capítulos, daqui para a frente, poderei trazer estes pequenos extras respeitantes à cultura ou à língua aqui criada na obra (ainda que nada muito pormenorizado, visto que não sou linguista).

Espero que tenham gostado deste novo capítulo, com a apresentação da outra protagonista da história. Ela irá aparecer com alguma frequência a partir daqui, alternando-se entre "o mundo de Killian" e "o mundo de Nileya".


Até ao próximo capítulo.

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