Capítulo 6 - O dever acima de tudo

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A noite caiu húmida. As roupas grudavam no corpo dos homens e as mantas ficavam esquecidas no fundo das tendas. Depois de uma noite fria ao relento, a floresta oferecia-lhes uma estadia mais quente e confortável. A terra era mais macia que nas terras baldias, ainda que não se equivalesse ao colchão de que os soldados sentiam falta.

A vigília estava apertada, com dois homens a fazer cerco à clareira onde passariam a noite. De duas em duas horas, dava-se a troca dos guardas. E todos traziam a arma no cós das calças, com a mão dominante a sentir-lhe a forma. Uma rápida lição de Jofrey e não havia homem algum da comitiva que, naquela altura, não soubesse como proceder no caso de alarme. Na verdade, apenas LeFou e Soline escaparam da entediante lição que o Rayne oferecera, de boa vontade, no final da tarde. O bom senso ditara que a aula fosse somente teórica, para frustração dos aprendizes, que queriam sentir o poder de disparar um engenho tão mortífero.

O general decidira dormir com a tenda aberta, para conseguir, mais rapidamente, ajudar os seus soldados em caso de emergência. Porém, a escassa luz da noite deveria ser mais intensa ali, filtrada pelas folhas das árvores frondosas em torno da clareira, do que quando havia uma redoma entre ele e o céu. Ou seria antes o peso da dúvida a afastá-lo do descanso merecido? A consciência vincava presença de forma desconcertante. Ele ainda não estava absolutamente convicto da sua decisão de chefiar homens armados. O jogo havia escalado para um nível para o qual não se sentia preparado. Como o Rayne salientara, passara a ser uma questão de vida ou morte. Naquele momento, eram vidas a mais nos seus ombros para que ele conseguisse fechar simplesmente os olhos.

Killian levantou-se esgotado das tentativas vãs em adormecer e encaminhou-se para uma das carrinhas. Ao passar pelos guardas de vigia, limitou-se a acenar. A sua expressão tentava transmitir uma tranquilidade que não existia. Mas ele era bom ator o suficiente para fazer seus homens acreditarem. Os dois sorriram brevemente, deixando depois a máscara de dureza cair sobre as faces cansadas, a única adequada ao trajeto circular que repetiam há trinta minutos. A crença de que os animais seriam afugentados por uma simples carranca era, no mínimo, absurda. Mas eles lá continuavam, hirtos e de sobrancelhas franzidas.

As portas traseiras do veículo não estavam totalmente fechadas e uma luz fraca escapava por uma estreita brecha. Ao entrar, o general foi assomado pelo cheiro intenso do soro que era injetado na corrente sanguínea do paciente. O líquido saía de um invólucro transparente através de um fino tubo que se perdia em um dos pulsos de LeFou. O tratamento parecia tão invasivo quanto os dentes que o haviam deixado naquela situação precária.

− Como é que ele está? – indagou ao analisar o doente sobre a cama improvisada. As caixas tinham sido empilhadas sob o único colchão maleável que haviam trazido. Não eram as condições ideias, mas teriam de ser as suficientes.

− Bem melhor – respondeu Soline, sem olhar para trás.

A enfermeira, por ocasião, pousou a mão na testa de LeFou pela milésima vez naquele dia. A sua baixa estatura tinha-lhe permitido manter-se em pé durante toda a administração do tratamento. Já Killian movia-se desconfortável, obrigado a assumir uma postura curvada. O recém ferimento no peito, já desinfetado pelo próprio, ardia-lhe debaixo do tecido da camisa.

– A febre já está a baixar, mas ele continua a perder bastante água. – A jovem voltou o rosto para o general e ele não gostou do que viu. Os olhos eram toldados por duas fundas depressões, os cabelos estavam ensopados do calor do stress e os músculos em volta da boca perdiam-se numa tensão amplificada pelo resto do corpo. − Tenho receio que ele acabe por ficar demasiado desidratado. O nosso stock de água não é ilimitado, como era em Villeneuve.

A máquina multiplicadora de moléculas teria dado jeito numa jornada como aquela, mas era demasiado grande e dependia de uma carga de energia que os pequenos geradores a bordo não tinham como suprir. Pela primeira vez, aqueles Homens tinham de enfrentar a dura realidade de que nada era eterno e racionar um recurso que, até então, tinham dado como certo.

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