Família é Família

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Christian 

Quando criança, eu me machucava bastante. Todos que conhecia eram adultos e estavam ocupados demais para brincar comigo, então sempre estava em apuros tentando buscar uma nova aventura para me divertir. Isso mudou quando a Júlia chegou na família, meus pais adotaram ela para me fazer companhia e começamos a brincar juntos. Todos nós fomos contagiados pela energia dela, até o pai e a mãe, éramos felizes. 

Em algum momento isso mudou. 

Abri o olho que conseguia ao máximo e me deparei com uma cena um tanto quanto curiosa. América estava sentada na cama mexendo no celular, intercalava entre comer e beber energético. Ela colocou o cabelo atrás da orelha e olhou para mim. 

- Ei - falei. 

- Ei você! - América disse e sua voz ecoou pelo quarto - Acordou, finalmente, quer ajuda para sentar?

Confirmei com a cabeça. 

- Ótimo. 

Ela veio até mim e colocou uma mão para que eu segurasse, a outra foi nas minhas costas para dar impulso. Tive a impressão de que meu abdome iria sair, embora eu não tenha feito muita força, foi como se o músculo estivesse se rompendo. 

- Você dormiu por bastante tempo, achei que fosse dormir mais, precisa descansar. A pressão está boa, eu comprei soro, seringas, tudo o que tinha na farmácia do hotel e entubei você, te dei alguns analgésicos, eles não vendem morfina sem receita, absurdo, não é? Ah! Eu comprei lanche também, mas você não pode comer, então comi tudo, mas sobrou umas fritas, daqui a pouco eu irei trocar seu curativo, então fica tranquilo. Também comprei roupas, então tomei a liberdade de trocar você e achei que fosse acordar, mas nem acordou. 

O que deu nela? Pisquei várias vezes na tentativa de entender tudo o que ela disse. Acredito que ficar muito tempo sem conversar com alguém nesse quarto acabou deixando-a desse jeito. Ela nunca foi de falar e muito menos desse jeito, desesperado e sem respirar. 

- Você tá bem? - perguntei e senti um gosto amargo da minha boca. 

- Tô. - ela disse - Tomei dezesseis energéticos, então estou eufórica. 

Neguei com a cabeça. América era incrivelmente maluca. 

- Por quanto tempo eu dormi? 

- Bom, cheguei aqui  ontem pela manhã e está noite... eu não quero contar. 

Dei risada. 

- Não me reprove, estava com sono e tinha que me manter acordada. - ela abriu um suco de caixinha - Toma, isso você pode tomar. 

América me ajudou com o suco, furou a caixinha e colocou canudo para que eu tomasse. Ela não tirou até que eu acabasse de beber tudo. De perto, eu conseguia ver a pupila dela dilatada e o suor em sua testa. Acabei fazendo ela passar por maus bocados. 

- Sabe, eu costurei você e limpei seu sangue, poderia ao menos me dizer o que aconteceu? - ela perguntou quando acabei. 

- Achei que você não fizesse o tipo preocupada. 

- Não estou preocupada, estou curiosa. - ela disse e enfiou uma batata frita na boca - Além do mais, você pode ser um criminoso e eu ser taxada como cúmplice, preciso entender o que está acontecendo. 

- Não viaja. - falei - Minha família tem certos problemas, meu pai então...

- Toda família tem, Christian. - ela estava me olhando enquanto mastigava - Ele fez isso com você?

- Sim, fez. 

- Mas que diabos? Por que ele faria isso? 

Na real, eu nunca tinha contado nada disso para ninguém e não sabia por onde começar. Sempre guardei as coisas, principalmente quando minha família está envolvida, acho que a minha criação influenciou isso, em casa não conversamos muito. Mas de alguma forma eu sinto que posso confiar na América para isso, ela não parece do tipo que se mete na vida dos outros ou que fala sobre elas e isso é bom. E talvez possa até me ajudar a encontrar uma solução para esse problema. 

- Quer saber? Eu não quero saber. - ela disse antes que eu começasse a contar algo. 

- Você acabou de perguntar. - falei e peguei a batatinha da mão dela. 

- É, mas é sua família, não é? Deve ter um motivo, não que isso vá justificar nada. Não acredito que nada possa justificar fazer essa merda. Mas ouvi uma vez que a violência é gerada por problemas mentais. Interna ele, põe na prisão, ou sei lá. Enfim, precisa resolver isso, não quero te ver assim novamente. 

Fiquei boquiaberto. América sempre arranjava um jeito de me surpreender e talvez fosse isso o que eu mais gostasse nela. Por mais que pareça uma garota comum, ela age diferente de qualquer outra que eu já tinha conhecido. Um ser humano normal no lugar dela teria chamado a polícia ou se desesperado. 

- Por que não chamou a polícia? - perguntei. 

- Eu deveria? Policiais são meio babacas, achei que não seria uma boa ideia. 

Dei risada. 

- São babacas sim. 

Ela enfiou uma grande quantidade de batatas na boca e deitou na cama com os braços abertos. Dava para notar o óleo na ponta dos dedos. 

- Eu achei que fosse morrer ontem. 

- Não vou morrer, América. Sinto muito que tenha visto aquilo. 

- Não você. - ela disse olhando para o teto - Eu. Eu pensei que eu iria morrer. 

- O que quer dizer? Está ferida? - perguntei e ela negou com a cabeça. 

- Não é tão raro jovens de vinte e poucos anos infartarem. Quando eu encontrei você, eu achei que meu coração fosse explodir, dava para ouvir ele batendo. Meu corpo estava tremendo e eu sabia que tinha alguma coisa errada. 

- Isso é...

- E sabe, eu não me lembro de ter sentido isso. - ela me interrompeu - A cada batida parecia que não tinha sangue o suficiente para bombear o meu corpo e mesmo que por uma fração de segundos, eu sentir dor aqui. 

Ela estava com a mão no peito massageando e possivelmente lembrando da sensação. Vi que deu uma leve suspirada e sentou para me encarar. 

- Eu preciso entender o que aconteceu comigo. Preciso saber se estou doente ou se realmente comecei a sentir alguma coisa, pois aquilo não foi nem um pouco perto de ser normal. Então, por favor, não me dê esse susto novamente. 

- Não darei. - garanti a ela - E peço desculpa por isso. 

Ela se jogou na cama novamente e suspirou. 

- Isso é tão confuso. 

Ela realmente não entendia. Não tinha dúvidas disso, mas presenciar é outra coisa. Quando me contou a respeito do acidente, fiquei imaginando e pensando como as coisas funcionavam na cabeça dela, não cheguei em nada concreto, mas parece que é muito mais difícil do que eu poderia imaginar. 

- Posso ajudar, se quiser. - falei. 

- Você me chamou, por que me chamaria?

- Acho que é a única pessoa que eu confio para falar sobre meus problemas. - respondi - E eu precisava de ajuda. 

- Faz sentido. Enfim, você tem seus próprios problemas, precisa cuidar da sua família e resolver o que aconteceu. - ela me olhou - E resolver rápido!

- Eu irei, eu irei. Mas você pode levar o tempo que quiser para resolver. 

- Antes de você dizer isso, eu já pretendia. - ela sorriu e olhou o celular - Minha família tá preocupada comigo. 

- Não disse a eles que vinha?

- Não. E nem irei dizer que estive aqui. Vão fazer perguntas e não saberei responder. 

- De qualquer forma, acho que precisa ir para casa. 

- Sim. 

América levantou e retirou toda a comida da cama e colocou na mesinha ao lado, que aliás, estava repleta de latas vazias de energético. Pegou uma almofada e jogou a sujeira no chão. Tirou o casaco folgado que estava vestindo e se deitou ao meu lado. 

- Mas só depois. - ela disse me olhando de perto - Agora vamos dormir. 





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