América Para Um Americano

Incômodo

América

Mais uma bronca e eu seria expulsa a aula de laboratório. Errei a sutura três vezes. Impossível, eu nunca desviava o foco enquanto estava nas aulas. Respirei fundo e tentei me concentrar novamente. Hoje não é o meu dia. 

Tentei desesperadamente consertar o meu erro e terminar a tarefa, mas não consegui. 

Como resultado disso, eu fiquei responsável por limpar o laboratório e trancar tudo. Não tinha ideia de onde as coisas ficavam. 

- Falou com a Lana? - Carla me perguntou quando todos saíram da aula. 

Tirei as luvas gosmentas de cera e joguei-as no lixo. Ignorei minha amiga e comecei a guardar os instrumentos que estava utilizando. Eu sabia que ela não iria sair dali e ela sabia que eu não iria responder. Passei por ela e guardei o jaleco no armário. 

- Sua irmã parecia chateada hoje pela manhã. - ela disse enquanto limpava a mesa.

- Onde ficam os bisturis? - perguntei a ela. 

- No terceiro armário. - ela respondeu - Não vamos falar sobre a Lana? Ok. Mas você precisa conversar com ela. 

Acontece que eu não tinha vontade alguma de conversar sobre isso. Carla disse que o Piter deixou escabar sobre o Christian e eu para a ela. Eu sei o que vai acontecer, Lana está chateada, vai gritar e chorar. Ontem ela voltou determinada a ter uma conversa, mas eu fingi que estava dormindo. Hoje eu saí mais cedo que elas para não ter que encontra-la. Não tenho intenções de discutir isso.

Carla continuou a me ajudar calada.

Terminamos de guardar os equipamentos, limpamos as mesas, o chão, trocamos o formol e até atualizamos o quadro de aulas.

- Você vem almoçar com a gente? - ela perguntou.

- Não dá, tenho consulta hoje. - respondi.

♣️

O consultório estava diferente do que me lembro, as paredes pintadas de azul agora estavam brancas dando um ar de profissionalidade. Também tinha mudado as inúmeras plantas e quadros, estava tudo mais limpo visualmente. Tinham alguns biscoitos em uma mesa que ficava próximo à janela tomando Sol. O que mais me chamou a atenção foi o lustre, parecia estar girando. 

- Te incomoda? - ela perguntou vendo que eu estava concentrada nele. 

- Não. - falei - Quanto tempo vai durar? 

- Considerando que você saiu cinquenta minutos antes da ultima vez, vai durar cinquenta minutos. - ela abriu um caderno que estava em seu colo - Não cobrarei hoje.

Eu saí às pressas quando Carla mandou mensagem falando que precisava de ajuda. Quando cheguei na Broken ela estava presa no vestido e não conseguia sair. Fiquei aliviada por não ter que voltar ao consultório e ignorei que ela precisava de ajuda. 

Só que pela minha imprudência e falta de responsabilidade, eu deveria ser cobrada. 

- Está tentando ganhar a minha confiança? - perguntei e ela sorriu. 

- Conte-me o que aconteceu desde a última vez que nos encontramos. É necessário que você seja totalmente sincera para que isso funcione. 

Não funcionava. 

Nunca funcionava. 

E em todas as vezes eu precisava que contar a minha vida para desconhecidos que no fim das contas não sabiam o que fazer. Meu pai precisou insistir bastante para eu não desistir dos tratamentos e é por ele, apenas por causa dele que eu ainda estou aqui. 

É estranho pensar sobre, desde que eu vim aqui ela nunca pediu para saber do acidente, nunca perguntou como as anteriores. Ela insiste em focar no que está acontecendo agora.

- Ok. - falei e respirei fundo - Vivi normalmente na faculdade com minha amiga Carla, você tinha me dito para tentar agir diferente do que eu normalmente agiria e fomos a uma festa, eu transei com um garoto e um dia depois eu descobri que ele ficava com a minha irmã. Tentei ignorar o fato disso ter acontecido e ela descobriu, agora quer conversar sobre. Ah! Eu ignorei a minha amiga Carla também! Meus pais estão preocupados com o rancho. 

Ela me olhou e sorriu. 

- Você se meteu em um problemão, hein.

Tudo por culpa sua. Se eu não tivesse ouvido e seguido os meus instintos, com certeza estaria levando a mesma vida tranquila de sempre.

- Vamos falar do problema mais recorrente. - ela anotou algo e me olhou - Esse garoto.

- Christian. - falei.

- Vocês se vêem com frequência?

- Sim, cursamos medicina juntos. - tinha esquecido de mencionar isso.

- Então são colegas de turma. Qual o motivo de ter se envolvido com ele?

- Sinceramente? Não foi nada especial. Eu achei que não fosse vê-lo novamente. - contei a medida que me lembrava - E agora, para onde eu olho ele está lá.

- E você considera isso ruim?

- Não.

Eu não queria que o Christian sumisse, apesar de ser exageradamente inteligente, ele é uma boa pessoa.

- Considera ruim o fato de sua irmã ter se relacionado com ele?

- Eu não sei dizer. Quer dizer, acho que não é da minha conta. Não é como se eu pudesse interferir.

- Você queria interferir?

Não respondi.

Eu queria? É difícil encontrar a resposta. Eu não faço ideia do que o Christian significa para mim.

- Quando esteve com ele, o que você sentiu?

- Foi como se... se não fosse eu, sabe? Como se os meus problemas tivessem sumido e eu fosse apenas uma garota comum.

- E você quer se sentir assim novamente?

- Eu acho que sim. - respondi - Mas não é como se eu pudesse apenas ignorar tudo.

- Parece que esse garoto trouxe algo bom para você. - ela ajeitou os pequenos óculos redondos - E a sua irmã?

- O que tem?

- Acha que ela gosta do tal Christian?

- Conhecendo-a bem, ela deve estar apaixonada. - respondi - Minha irmã é uma pessoa intensa, ao contrário de mim.

O alarme de mesa apitou e eu levantei subitamente.
A senhorita Lindal levantou também e foi desligá-lo.

- Conversaremos daqui a algumas semanas, América.  - ela disse e se aproximou.

- Sim.

Ela se aproximou e colocou as duas mãos em meus ombros.

- Quero que me escute bem. - assenti olhando-a nos olhos - Converse com a sua irmã e ouça o que ela tem a dizer, provavelmente ela precisa de uma amiga. E quanto ao garoto, seus olhos se iluminaram ao falar dele, quero que pense a respeito sobre isso.

- Tudo bem. - falei.

Ela retirou as mãos e eu passei pela porta do consultório. Normalmente eu faria o pagamento na portaria, mas dessa vez eu não preciso.

Voltei para o campus e no meio do caminho comprei alguns hambúrguers com carne dupla, os favoritos da Lana. Desde o acidente, eu não consigo ter a mesma compaixão para tratar dos problemas, então substituo por comida.

Por um milagre divino a Ayko não está fazendo barulho hoje, acredito que depois da zona de ontem, eles vão ficar parados por um tempo.

Encontrei Lana e Carla no quarto conversando sobre alguma coisa.

- Lana, precisamos conversar. - levantei os sanduíches - Carla, sai.