INCONGRUENCIAS

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"A lágrima da tristeza, é um veneno para uma alma atormentada."
J. I jr

           Rafael, estava com a respiração mais cansada e com as dores abdominais aumentando. Em silêncio observa as pessoas de dentro do carro, guiado por Júlio.

           Os sinais de trânsito vão progredindo entre vermelhos e verdes, e de certa forma, Rafael martiriza-se com essas dicotomias. O vermelho como aviso que não poderia ter seguido a diante... que deveria ter sido mais atentos aos sinais, e que agora, a cor verde, simbolizava que merecia sofrer.

— Eu pisei na bola. — Sem tirar os olhos da estrada, e sem coragem de olhar para o irmão, Júlio tenta forçar um diálogo.

— Sim, de fato pisou.

— Como não verifiquei todas as informações?

— Você sabe porque caímos da bicicleta, quando já sabemos pedalar? — Júlio olha para o lado e vê Rafael ainda olhando pela janela. — Por que sabemos pedalar. Parece algo tolo de se dizer, Júlio.... mas a verdade é que caímos, porque julgamos que nunca vamos cair. — Rafael, olha para Júlio — A minha vontade era de te matar. — Novo silêncio — Mas, preferi não jogar às cartas.

          A vontade que Júlio sentia de perguntar o porquê deles estarem indo para o funeral da freira era imensa, mas, ao receber essa resposta a vontade passou. Preferindo agora o silêncio, depois de saber qual teria sido seu destino por causa do erro cometido, fixa sua atenção no caminho.

— Eu não te matei por causa da nossa mãe. Mas, você não tem ideia o tanto que lutei contra a maré, para não fazê-lo.

          A Capela do Messias Salvador, não é pequena. Cabem quinhentas pessoas sentadas. O átrio foi construído como uma semi-circunferência, onde o púlpito fica projetado para ficar mais à frente, parecendo que o ponto da marcação da circunferência começou ali.

           A nave do templo tem três linhas de bancos de madeiras, separadas pelas escadarias de mármore branco, e de forma descendente, tipo um teatro ou cinema, onde quem senta mais atrás fica mais alto que está na frente.

            As principais rede televisivas estão acompanhando a cerimônia. O esquife branco, colocado na frente do altar, encontra-se fechado. Ao lado, a senhora Laura Lucena, mãe de Maria Fernanda, alisa a estrutura de madeira como se fosse o rosto da filha.

         Rafael, com dificuldade, desce do carro na frente da igreja. Ele para e puxa a respiração. As pessoas vão abrindo caminho, respeitando a condição cadavérica do homem que pede licença.

         Se colocando apoiado em uma das três pilares que seguram a estrutura do primeiro andar, Rafael chega a tempo de escutar o início da preleção do padre, que não demora muito. O padre está terrivelmente emocionado. O que ele mais faz é perguntar sucessivas vezes "Por que?".

          A cada novo "Por que?", Rafael sente uma pontada dura em seu coração. Apoiado em sua bengala, o homem abaixa a cabeça e chora. O seu lamento é tão alto, que causa desconforto nos presentes.

           A dor da perda. A dor de ter provocado a perda. Dor. Dor e dor. Essa palavra tornou-se a muito tempo seu sobrenome, mas, sentida pelos outros.

          Terminado a cerimônia, Rafael entra na fila para prestar as condolências. Laura, encontra-se no meio dos seus pais. Uma família evangélica que teve na sua filha e neta católica, uma mártir.

          Não mandamos em nossos pensamentos, e acho que exatamente por isso, por um momento ínfimo, Rafael pare para pensar nessa situação híbrida, onde ele não poderia casar com Laura se não fosse crente, mas a menina que nasceu, filha dos dois, tornou-se uma freira. As incongruências permitidas pela vida.

           A fila vai se aproximando do esquife branco. Uma gastura incômoda, corrói o estômago de Rafael, que tenta puxar o ar com dificuldade. A incerteza bate-lhe não porta do coração. A certeza que não deveria estar ali, aumenta a cada passo dado para frente. Na direção do caixão.

            Laura, o reconhece pelo olhar, e com um pulo para frente o abraça. Em comoção gerada pela culpa, ela chora nos ombros dele dizendo:

— Me perdoe! Me perdoe! — Rafael sente o estômago embrulhar com aqueles pedidos de desculpa — Me perdoe por nunca ter dito para você... era nossa filha. — Rafael sente suas pernas desfalecerem, mas a bengala o ajuda a manter-se de pé. O ar para respirar lhe falta. Parece o fim do mundo. — Mataram nossa menina, Rafael! Mataram nossa menina.

          Júlio, que vem se aproximando, escuta a última frase dita por Laura, e agora entende toda a dor que seu irmão vem sentindo. Rafael, não havia contado que matara a própria filha.

           Sem a ajuda de uma bengala, o homem de cem quilos, fraqueja as pernas caindo de joelho. Só não desce escada a baixo, graças aos bancos de madeira que o segura.

          Júlio, é ajudado a se levantar. Por causa dele Rafael matou sua única filha. E agora entende a vontade que o irmão teve de mata-lo. A menina não era somente inocente, mas era filha de seu irmão.

           As lágrimas que lavam o rosto de Rafael, são secas com um lenço preto que ele puxa do bolso interno do terno cinza. Parando ao lado do corpo da filha, o assassino da freira e pai da vítima,  alisa o esquife branco fechado e sem saber se é realidade ou coisa da sua cabeça, Rafael vê minar de dentro do caixão, uma gota de sangue que pinga sobre seu sapato preto.

O Coice de Mula - COMPLETO - Lançado no dia 03/05/2020 Onde histórias criam vida. Descubra agora