Capítulo 1 - Seguindo o Curso

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    O barco bateu com violência contra a rocha, lascas da madeira que se quebrou rodopiaram no ar junto dos pingos de água que voavam contra o rosto dela que rapidamente se equilibrou, conseguindo firmar seus pés no chão escorregadio e ficar em pé novamente, o barco estava inclinado para o lado direito por conta da rocha abaixo, na verdade o chamar de barco é meio generoso, a embarcação era uma jangada feita de grossas toras, não havia mastro nem vela, duas elevações, uma na frente e outra atrás, funcionavam como contrapeso um para o outro mantendo um equilíbrio ao mesmo tempo que uma era o compartimento de estoque e a outra uma proteção para a proa, essa que salvou a jangada do impacto atual, um pequeno deque se fazia presente era onde a garota se encontrava, a embarcação rangia e ameaçava se desvencilhar da pedra.

    Olhando para baixo e em volta ela procurava seu condutor, pelo menos era assim que ela chamava aquele enorme e forte galho ao qual usava para manejar a jangada na água, por sorte ele, assim como ela, não havia caído para fora, preso na embarcação por uma pequena falha na madeira, ela agradeceu mentalmente e pegou a madeira, usou o condutor contra a pedra que a prendia, fez um pouco de força e sentiu a jangada se mexer, repetiu a ação e teve resultado igual, então com seu último impulso quase se desequilibrou quando sentiu a jangada se libertar da superfície sólida e voltar para a água, viu a pedra ao qual havia encalhado se distanciar aos poucos enquanto a embarcação seguia na água. Ela abriu um sorriso de vitória e se sentou na madeira, deu uma risada.

– Carne – gritou ela – viu pelo que passamos? Ou perdeu toda ação de novo?

    Ninguém respondeu, pelo menos não em forma de som, mas sim em forma de pensamentos.

– Perdi e não me arrependo, você me conta depois – disse a voz nos pensamentos da garota, de forma meio emburrada.

– Mas não é a mesma coisa – falou a garota – não tem a mesma diversão.

    De dentro de uma das portas do compartimento pulou um cachorro, era um boiadeiro-australiano coberto por uma pelagem avermelhada clara, uma mancha negra na pelagem entorno do olho esquerdo demarcava uma característica unica, o cachorro se aproximou e se sentou ao lado da garota, também olhando a paisagem.

– Então ter a vida em perigo é diversão agora – perguntou a voz.

– Sim – respondeu ela depois de dois segundos de uma careta pensativa.

– Ok – disse a voz parecendo irritada – não vou discutir com você! Pelo menos estamos vivos.

– Tá irritadinho – disse ela fazendo um biquinho de provocação.

– Não me enche o saco – respondeu a voz ao mesmo tempo que o cachorro saiu do lado da garota e subiu na elevação da frente do barco.

    A garota olhou para ele indo até a proa com vontade de rir, jogou o corpo para trás ficando deitada, fechou um dos olhos e deixou o outro semiaberto por conta da luz do sol. A garota possuía cerca de um metro e cinquenta, usava uma calça cargo cor laranja, uma jaqueta de couro marrom escuro aberta deixando amostra seu blusão por baixo de vermelho e branco xadrez, nos pés um par de botas grossas e impermeáveis, todas as vestimentas estavam sujas, desgastadas e úmidas, o cabelo era de uma cor castanho claro que de acordo com a iluminação parecia loiro, e estavam amarrados para trás em um coque frouxo que ameaçava se desvencilhar, ela tinha um nariz curto e arredondado como o de um bebê, os olhos cor castanhos tinham grandes olheiras claramente perceptíveis, o sorriso mostrava que um canino da direita inferior não mais fazia parte da arcada dentaria da garota.

    Ela ficou alguns minutos, vendo o céu através de duas barras pretas que eram suas pálpebras semiabertas, mal conseguia ver o céu azulado preenchido por várias e colossais nuvens brancas, ela ouvia o som que a água calma do rio fazia ao entrar em contato com a madeira da embarcação, ela ouvia um ou outro canto de pássaro vindo da floresta na beira do rio, todas soando melodicamente bonitas e sem pressa nenhuma em sua execução, ouvia o som do vento mexendo as folhagens das árvores em uma paz conjunta. Toda aquela paz a fazia se sentir tanto estranha quanto confortável, estranha pois não era muito normal lugares onde os rios do Charco ficavam calmos daquele jeito, e confortável pois lembrava de quando vivia em Pillsbury, os dias eram da mesma forma, calmos e recheados de paz. Lembrando disso ela teve uma ideia, se levantou em velocidade impressionante e se sentou ao lado do cachorro na proa.

– Que tal cantar um pouco – disse ela.

O cachorro deu uma olhada de canto.

– Não posso cantar lembra – disse a voz dentro da cabeça dela.

– Não de dentro para fora – ela riu – mas de dentro para dentro sim.

– Eu não sei se isso faz sentido, mas tudo bem! Qual?

– Ainda pergunta?

– Era para parecer natural. Vamos lá então.

    Após uma espécie de preparação da garota ela começou a cantar, cantava alto e no ritmo rápido e dançante da música, a sua voz fina ecoava pelos vãos do rio indo para a floresta e alertando vários animais, os deixando confusos entre se esconder, esperar ou correr. Dentro da mente da garota voz cantava no mesmo ritmo e em sincronia com a sua voz. A garota começou a bater o pé na madeira e bater palmas produzindo um instrumental improvisado que combinava com o ritmo e tornava a música mais palpável e viva, conforme a música seguia a garota começava a cantar mais e mais alto, o lugar não era mais silencioso como antes, e conforme o sol que ia se recolhendo as músicas mudavam, mas todas em ritmos rápidos e altamente dançantes, tão dançantes que quando o som de vários instrumentos começaram a tocar em sua cabeça ela se levantou e dançou alegremente enquanto o cachorro a olhava da elevação na madeira, balançando seu rabo. E foi isso até anoitecer.

    Ela dormiu tão rapidamente que parecia ter se deitado no saco de dormir e desmaiado, em poucos segundos já estava com a respiração calma e ritmada do sono, o cachorro olhou para ela dormindo virada de lado no meio do deque e de certa forma se sentiu triste, pois queria poder viver mais que uma porção de anos para continuar com ela, ver ela crescer e acompanha-la, mas não podia, a natureza impôs isso a ele, e nada ele poderia fazer para mudar esse fato, mas pensando nisso também sentia uma certa felicidade, afinal o tempo que ainda teria pela frente seria ao lado dela. Ele foi novamente até a proa e ficou ali cuidando o rio que ainda descia calmo, cuidava mais com seu faro e sua audição do que com a visão que era praticamente inútil na escuridão, pelo menos conseguia ver o rio por onde a luz branca da lua reluzia.

    E a embarcação seguiu rio abaixo, silenciosa por toda a noite.

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